|🍽 Fazer jejum intermitente é associado a desejo intenso por comida e compulsão alimentar
Por Luiza Caires e Moisés Dorado, do Jornal da USP
Mesmo sem haver base científica sólida, o jejum está sendo amplamente divulgado por influenciadores e até profissionais de saúde como uma prática benéfica para a saúde, mencionando redução de peso e controle de doenças metabólicas. Mas um estudo com universitários brasileiros chama atenção para efeitos colaterais preocupantes. A pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) revela que o jejum pode acentuar comportamentos alimentares desordenados, como compulsão alimentar e desejos intensos por comida, especialmente entre jovens.
No estudo, os jejuadores apresentaram níveis significativamente maiores de compulsão alimentar e desejos por comida – e de forma mais acentuada conforme aumentava o tempo de jejum. “Aqueles com episódios severos de compulsão tiveram uma taxa 140% maior de horas de jejum em comparação aos não compulsivos. Além disso, a cada aumento na escala de desejo por comida, houve aumento também nas horas de jejum”, detalha Jônatas de Oliveira, autor do estudo.
Esses achados trazem novas perspectivas sobre os riscos associados às práticas alimentares restritivas, que já têm sido desaconselhadas por especialistas do campo da nutrição comportamental. Jônatas de Oliveira, que também é doutorando na FMUSP, explica que “o jejum costuma ser adicionado como uma prática dentro de uma linha do tempo onde as pessoas já tentaram mudar o corpo por meio do controle e de algum tipo de dieta”.
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Ciclo restrição-descontrole
O nutricionista diz que “a intencionalidade por trás do regime de jejum adotado representa um fator-chave para o impacto emocional e comportamental”, e por isso mesmo ele optou por estudar o efeito da prática nos desejos intensos por comida (food cravings).
Segundo ele, os dados sugerem que o jejum, ao invés de ser uma estratégia eficaz de controle alimentar, pode estimular um um ciclo de restrição e descontrole, agravando sintomas de compulsão. “Essas práticas não apenas comprometem a relação do indivíduo com a alimentação, mas também têm implicações para a saúde mental”, diz.
E acrescenta que “nem os riscos nem os benefícios do jejum intermitente foram totalmente estudados ainda. Ele pode ter resultados positivos em curto prazo para indivíduos que não são predispostos a desenvolver transtornos alimentares, mas pode ser prejudicial para populações que estão no grupo de risco, como adolescentes”.
O pesquisador adverte ainda que os modelos experimentais (pesquisas feitas em animais) que mostram efeitos benéficos do jejum não são adequados, pois não representam a linha do tempo de um jovem adulto que já realizou dietas anteriormente – lembrando que as dietas promovem impactos metabólicos e comportamentais em quem as pratica.
Entidades de saúde, como a Associação Brasileira de Nutrição, também pedem cautela e que as orientações já consolidadas durante anos de pesquisas sejam as indicadas aos pacientes.
O parecer técnico de 01/2019 diz que “são necessários ensaios clínicos controlados randomizados, especialmente de longo prazo e envolvendo humanos, sob jejum intermitente versus dietas convencionais de restrição calórica contínua que permitam comprovar a eficácia” do jejum e “sobretudo seus potenciais efeitos adversos”.
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A Abran afirma que as alegações para a utilização do jejum ainda são insuficientes para sua recomendação, e que uma alimentação adequada e saudável é “baseada nos princípios e recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira, orientada por um nutricionista habilitado”, e aquela “associada à prática de exercícios físicos e bons hábitos de vida”. Diz também que “é dever do nutricionista analisar criticamente questões técnico-científicas e metodológicas de práticas, pesquisas e protocolos divulgados na literatura ou adotados por instituições e serviços, bem como a própria conduta profissional”.
A pesquisa
Publicado como artigo no Journal of the National Medical Association com o título Tente não pensar em comida: Uma associação entre jejum, compulsão alimentar e desejos por comida, o estudo avaliou 458 estudantes da USP, divididos entre praticantes de jejum nos últimos três meses e não praticantes.
A análise estatística apontou para uma relação diretamente proporcional entre as horas de jejum acordado – quando há mais esforço mental para fazê-lo – e a presença de características como compulsão alimentar, desejos por comida e consumo de alimentos tidos como “proibidos” para quem deseja emagrecer, como os gordurosos e com muito açúcar.
O estudo não realizou o diagnóstico de transtorno alimentar, o que requer uma entrevista clínica. Porém, com base nos instrumentos utilizados, que têm uma alta sensibilidade para detecção de riscos, foi possível verificar o nível de compulsividade. “Dentro do espectro da compulsividade, existe a compulsão com baixo peso, a compulsão junto com a purgação e há ainda a compulsão isolada. É como se fossem categorias de um possível diagnóstico de transtorno alimentar”, esclarece.
Os resultados encontrados, comenta o pesquisador, “ressaltam a importância de estratégias alimentares baseadas na regulação emocional e comportamental, especialmente para jovens universitários, que são particularmente vulneráveis a transtornos alimentares”.
Transtornos alimentares e comer transtornado
Existem transtornos alimentares já bem definidos na literatura médica. A anorexia nervosa, por exemplo, é um transtorno em que a pessoa tem um medo excessivo de ganhar peso, provocando restrição alimentar e redução no consumo de alimentos, o que leva a uma perda significativa de peso sem que a pessoa note. Isso acontece porque a pessoa apresenta uma alteração na percepção real do seu peso e silhueta corporal.
Já a bulimia nervosa é caracterizada por episódios frequentes de compulsão alimentar, nos quais há um consumo de grandes quantidades de comida, seguido de comportamentos compensatórios inadequados como práticas purgativas, ficar sem comer e praticar exercícios em excesso para tentar controlar o peso.
Por fim, o transtorno de compulsão alimentar tem como principal característica episódios frequentes de comer exageradamente, mesmo quando não se tem fome. Existe uma perda do controle sobre o que se comer, mas não existem comportamentos compensatórios com a intenção de eliminar o que comeu.
Mas mesmo sem ter algum desses transtornos alimentares diagnosticados, muitas pessoas podem apresentar sinais de alerta, conhecidos como o “comer transtornado”. “Todo transtorno alimentar é um comer transtornado, mas nem todo comer transtornado é um transtorno alimentar”, diz Jônatas de Oliveira, ao explicar a linha de transição.
Muitas pessoas praticam jejum, “se livram” da comida, ou fazem exercício compensatório, com a intenção de “gastar” o que comeu – que são comportamentos verificados no transtorno alimentar. Mas elas ainda não preenchem todos os critérios para o diagnóstico.
“No comer transtornado, há cognições e crenças que vão levar a comportamentos com algum nível de sofrimento, sim, sempre relacionado ao corpo. Mas escolhemos usar o termo ‘comer transtornado’ para não sair classificando tudo como transtorno alimentar, que tem uma prevalência relativamente baixa na população em geral, e assim não medicalizar as pessoas excessivamente.”
|📸 © Bella H./Pixabay
Rádio Centro Cajazeiras