?? Mais obras e auxílio social: o ‘desenvolvimentismo’ econômico que aproxima Bolsonaro do PT
Em sua trajetória rumo ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro conquistou, na eleição de 2018, o apoio da elite econômica abraçando a proposta de redução do Estado do liberal Paulo Guedes, que se tornou seu superministro da Economia.
No plano de governo do então candidato presidencial, estavam promessas de “enxugamento do Estado”, “equilibrar as contas públicas no menor prazo possível” e a “gradativa redução da carga tributária bruta brasileira paralelamente ao espaço criado por controle de gastos e programas de desburocratização e privatização”.
As promessas, que já andavam lentamente no primeiro ano de governo, estão mais distantes de serem implementadas depois que a pandemia de coronavírus provocou um forte aumento das gastos públicos devido às ações para conter o estrago econômico, como o amplo programa de auxílio emergencial de R$ 600.
Proposto para ser temporário, o benefício deve passar por uma reformulação para virar permanente e substituir o Bolsa Família, depois de ter ajudado a alavancar a popularidade do presidente, que antes era crítico da transferência de renda.
“O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”, disse em 2011, quando era deputado federal.
Nesse cenário, em que a explosão do déficit fiscal (previsto para quase R$ 800 bilhões em 2020, valor recorde) já é dada como certa, outra agenda dos governos petistas também tem ganhado espaço na gestão Bolsonaro: a ampliação dos investimentos públicos em obras para alavancar o crescimento econômico.
A ideia é defendida pelos ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Tarcísio Freitas (Infraestrutura) e general Walter Braga Netto (Casa Civil), grupo que passou a ser pejorativamente chamado de “desenvolvimentista” por Guedes em referência à política econômica dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
“O caminho desenvolvimentista foi seguido, o Brasil quebrou por isso, o Brasil estagnou. A política foi corrompida, a economia estagnou através do excesso de gastos públicos”, criticou Guedes na reunião ministerial de 22 de abril, que se tornou pública por decisão do Supremo Tribunal Federal.
Marinho rebate as críticas dizendo que se trata de um momento especial, em que é preciso abandonar os “dogmas” econômicos. Ex-deputado federal pelo Rio Grande do Norte, com mais traquejo político que Guedes, ele tem viajado com o presidente para visitar obras em cidades Nordeste, forte reduto petista onde Bolsonaro teve aumento recente de popularidade, segundo pesquisa Datafolha.
“Sou a pessoa que sempre teve responsabilidade fiscal, mas estamos vivendo um momento de excepcionalidade. O que estamos defendendo é que uma parte ínfima desse recurso fosse disponibilizado para investimentos, R$ 5 bilhões, R$ 6 bilhões, de um déficit de R$ 800 bilhões que teremos neste ano”, disse em entrevista recente a rádio Jovem Pan.
‘Medidas para ampliar popularidade em meio a denúncias’
Bolsonaro se equilibra entre os dois grupos. Na semana passada, reforçou seu compromisso com a regra do Teto de Gastos (que limita o crescimento das despesas) em pronunciamento ao lado dos dois ministros e dos presidentes da Câmara (Rodrigo Maia) e do Senado (Davi Alcolumbre), para depois admitir em uma live no Facebook: “A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?”.
Para a cientista política Lara Mesquita, do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp-FGV), Bolsonaro não tem intenção de copiar o PT, partido do qual é ferrenho crítico, mas está disposto a abraçar políticas que possam viabilizar sua reeleição em 2022. Ela lembra que o presidente e sua família têm sido alvo de denúncias de possíveis esquemas de corrupção que envolveriam, por exemplo, o desvio de recurso do antigo gabinete de deputado estadual do seu filho Flávio Bolsonaro, hoje senador.
“A impressão que tenho é que ele está procurando algo que possa mantê-lo vivo politicamente, buscando espaços onde possa entrar para aumentar a base de apoio eleitoral”, diz Mesquista.
“O presidente não tem uma agenda de governo própria. Ele não sabe se vai com o Paulo Guedes ou com os militares, mas tem clareza que precisa continuar no governo para manter a família dele a salvo”, acredita.
Coordenador do Centro de Estudos do Novo-Desenvolvimentismo da FGV, o economista Nelson Marconi também vê interesses eleitorais na adesão do Bolsonaro a estratégias econômicas do PT. Ele, porém, considera que seu governo está longe de ser “desenvolvimentista”, ainda que as iniciativas em estudo se concretizem.
“O termo desenvolvimentismo é hoje usado de uma forma muito difusa e fora do sentido dele. Na verdade, quando você fala em desenvolvimentismo, precisa ter uma estratégia de desenvolvimento que é coordenada pelo Estado junto com o setor privado, construída conjuntamente, e que vise o crescimento econômico com estabilidade”, afirma.
“O que uma ala do governo está querendo fazer é aumentar o investimento para ver se isso alavanca o crescimento, mas isso não está dentro de uma estratégia de desenvolvimento. É uma medida absolutamente pontual, rudimentar”, reforça ele, que foi também coordenador do plano econômico do candidato presidencial Ciro Gomes.
Na sua visão, também faltou uma estruturação mais sólida à estratégia de desenvolvimento do PT. Para Marconi, a forte queda do dólar no governo Lula dificultou a competitividade da indústria, o que Dilma tentou compensar com altos subsídios ao setor. A estratégia não funcionou e provocou um grande rombo nas contas públicas e recessão econômica em 2015 e 2016.
“Nesse sentido, eles (governo PT e Bolsonaro) se aproximam. O PT também fez uma política desenvolvimentista capenga. E o termo desenvolvimentista paga um ônus pelos erros lá atrás”, acredita.
‘A mosca do desenvolvimentismo picou os militares’
Embora hoje esteja muito associado aos governos petistas, o desenvolvimentismo é bem anterior ao PT e surge associado às Forças Armadas, explica o professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, que foi secretário de Política Econômica no governo José Sarney e consultor pessoal de Lula para a área.
“Ele nasceu nos anos 30 (momento de forte crise econômica após a Grande Depressão de 1929 nos Estados Unidos) com uma presença importante dos militares que participaram do movimento tenentista e que tinham essa visão da modernização do Brasil”, ressalta Belluzzo.
A partir daí, diversos presidentes foram “desenvolvimentistas”, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel (presidente durante a ditadura militar). Seus governos usaram o Estado como agente central na construção de grandes obras de infraestrutura (hidrelétricas, rodovias, usina nuclear) e na industrialização do país, com a criação de estatais (Petrobras, Vale, CSN, Furnas, Embraer) e medidas protecionistas (taxação de importações, por exemplo).
Os governos do PT investiram novamente em grandes obras por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como as usinas de Belo Monte e Jirau e a transposição do rio São Francisco, ou na construção civil com o programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Esses investimentos bilionários de fato alavancaram o PIB, porém também pressionaram a inflação e as contas públicas. Além disso, vários deles foram marcados por atraso e denúncias por corrupção contra empresários e políticos de diversos partidos.
Belluzzo também considera que o desenvolvimentismo petista foi limitado pela falta de uma política industrial mais efetiva. Para ele, o auge dessa estratégia se deu com Kubitschek (1956 a 1961), quando houve a construção de Brasília e a adoção de um plano de metas para a modernização econômica, instrumento depois retomado na ditadura militar como os planos nacionais de desenvolvimento (PND).
Bolsonaro é capitão reformado do Exército e tem 11 dos 23 ministros vindos das Forças Armadas, o que acaba trazendo essa visão para dentro do seu governo.
“Eles (os ministros militares) têm a herança do desenvolvimentismo que vem lá de trás. É uma coisa que está no DNA das Forças Armadas. Eles (os ministros) foram picados pela mosca do desenvolvimentismo e querem tirar a economia de um nível de atividade muito baixo. As perspectivas de crescimento são muito duvidosas”, afirma Belluzzo, para quem é impossível reativar a atividade econômica sem ampliar investimento público.
“Ele (Bolsonaro) nunca foi liberal. As declarações dele como deputado eram contra as privatizações. Então, vejo isso (fortalecimento de uma ala desenvolvimentista no governo) como algo natural, muito esperado, por que o projeto liberal não vai funcionar, não tem nenhuma viabilidade”, acrescenta o professor.
Regime militar acabou em ‘década perdida’
No caso dos militares, porém, a política desenvolvimentista gerou forte crescimento nos anos 70, mas acabou em grande recessão nos anos 80, período que ficou conhecido como “década perdida”. Isso aconteceu porque os grandes investimentos do Estado durante a ditadura militar foram bancados com financiamento externo, que inicialmente estavam baratos.
No entanto, após os choques de preço do petróleo no anos 70, as taxas de juros nos países desenvolvidos dispararam, elevando bruscamente a dívida externa brasileira. Esse final recessivo do regime militar é constantemente lembrado pelos liberais críticos do modelo desenvolvimentista.
Um deles, a consultora econômica Zeina Latif, diz que o investimento público no Brasil é muito ineficiente e defende que o governo retome a austeridade fiscal como política de recuperação da economia. Na sua visão, o abandono do Teto de Gastos causaria desconfiança no setor privado e alta de juros no país, prejudicando a atividade econômica.
Num ponto, porém, ela concorda com Belluzzo: “Bolsonaro está voltando ao que ele era. O Ernesto Geisel foi nacional-desenvolvimentista. Ele está voltando a suas origens”, aponta.
“Uma coisa curiosa, no Brasil, é que tanto o pessoal mais ao extremo na direita como na esquerda têm pensamento de política econômica muito parecido. Divergem na pauta de costumes, mas na agenda econômica, se aproximam”, disse também, ao criticar a política econômica da ditadura e dos governos petistas.
Valores ainda em estudo no governo
O governo ainda não bateu o martelo sobre como será o Renda Brasil, programa de transferência de renda que deve substituir o Bolsa Família e o auxílio emergencial, nem quanto destinará para as obras defendidas por Marinho e os militares.
O auxílio emergencial foi proposto inicialmente no valor de R$ 200 por Guedes e foi elevado para R$ 600 após pressão do Congresso. Com isso, seu custo mensal é de cerca de R$ 50 bilhões, superior ao orçamento anual do Bolsa Família (R$ 30 bilhões), programa que atende menos pessoas e tem benefício menor (em média, inferior a R$ 200).
O governo agora estuda um valor intermediário para o Renda Brasil, a partir do término de outros benefícios sociais, como o Abono Salarial (até um salário mínimo pago a trabalhadores de baixa renda com carteira assinada), o que deve enfrentar resistência no Congresso.
No caso dos investimentos público, chegou-se a falar de R$ 30 bilhões em três anos (2020 a 2022) quando foi anunciado em abril a intenção de lançar o programa Pró-Brasil. Agora, porém, o governo tem sinalizado que o valor para este ano pode ficar em apenas R$ 5 bilhões. O que também não está claro é se essa valor virá do remanejamento de outros gastos, como defende Guedes, ou de uma operação para “furar” o Teto de Gastos, aproveitando o regime fiscal emergencial aprovado por causa da pandemia.
Rodrigo Maia, no entanto, disse que isso seria inconstitucional, já que apenas gastos emergenciais ligados ao enfrentamento do coronavírus podem ser excluídos do teto.
Para Nelson Marconi, um programa de investimentos nesse patamar terá impacto pequeno na economia: “R$ 5 bi em investimentos não é nada. Ajuda o Bolsonaro a viajar para inaugurar uns monumentos de início de obras, só se for isso”.
Via BBC Brasil