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Paraibana CĂĄtia de França Ă© destaque em reportagem nacional: âFĂȘnix negra da mĂșsicaâ

A cantora paraibana CĂĄtia de França Ă© destaque no site da AgĂȘncia Brasil. A reportagem, assinada por Cibele TenĂłrio, estĂĄ intitulada âFĂȘnix negra da mĂșsica, CĂĄtia de França Ă© exaltada pela nova geraçãoâ.
A artista, cujo nome de batismo Ă© Catarina Maria de França Carneiro, nasceu em JoĂŁo Pessoa, no dia 13 de fevereiro de 1947. Ă uma cantora, compositora e escritora brasileira. Sua mĂșsica tem como fonte a literatura, fazendo referĂȘncias Ă obra de GuimarĂŁes Rosa, JosĂ© Lins do Rego, Manoel de Barros, alĂ©m de JoĂŁo Cabral de Melo Neto, mas que tambĂ©m Ă© definida pela mesma como âpopular mundialâ, por incluir referĂȘncias que vĂŁo desde os nordestinos Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, atĂ© Elvis Presley, Beatles e o mineiro Clube da Esquina.
Confira reportagem completa â âFĂȘnix negra da mĂșsica, CĂĄtia França Ă© exaltada pela nova geraçãoâ

Em novembro de 2024, a cantora e compositora paraibana CĂĄtia de França era pura ansiedade ao embarcar em um voo para os Estados Unidos. Seu ĂĄlbum, No rastro de Catarina, lançado naquele mesmo ano, fora indicado ao PrĂȘmio de Melhor Ălbum de Rock ou MĂșsica Alternativa em LĂngua Portuguesa no Grammy Latino. A cerimĂŽnia de premiação ocorreria em Miami no dia 14 daquele mĂȘs, e ela seguia para lĂĄ.
Ao passar pela fiscalização da alfĂąndega estadunidense, um oficial queria saber o que a senhora de corpo franzino e cabeleira branca como algodĂŁo iria fazer nos Estados Unidos. Sem fluĂȘncia em inglĂȘs, CĂĄtia contou com a ajuda de sua produção para explicar que era uma artista e, mais que isso, fora indicada a um dos prĂȘmios mais respeitados da indĂșstria da mĂșsica. O policial ficou impressionado.
âEle jĂĄ olhou para mim como quem diz: por que ela ainda nĂŁo estĂĄ quieta, numa cadeirinha, se lembrando do passado? Ele vibrou! Imagina um policial americano que Ă© tido como âbrutamontesâ! E ali, o rosto dele acendeu uma luz. Isso jĂĄ me fez um bem medonhoâ, relembrou.
A surpresa do policial talvez tenha se devido Ă aparĂȘncia de CĂĄtia, uma senhora de 78 anos, de magreza delicada e cabelos brancos ostentados com orgulho. A suposição de fragilidade sobre ela nĂŁo poderia estar mais equivocada. Multi-instrumentista com mais de meio sĂ©culo de mĂșsica, CĂĄtia de França, que no documento Ă© Catarina Maria de França Carneiro, Ă© uma força da natureza com uma mente inquieta e pulsĂŁo criativa irrefreĂĄvel.
A inventividade e a sensibilidade que embasaram seu ĂĄlbum de estreia, o aclamado â20 palavras ao redor do solâ, lançado em 1979, ainda seguem firmes com ela. âComponho atĂ© com bula de remĂ©dioâ, diz a paraibana. ApĂłs viver uma espĂ©cie de renascimento artĂstico ao ser descoberta pelo pĂșblico jovem, ela tem hoje uma agenda apertada com apresentaçÔes em todo o Brasil.
CĂĄtia se apresentou na Ășltima quinta-feira (24), no Festival AgĂŽ em BrasĂlia. E parte do pĂșblico que a vĂȘ nos palcos atualmente nĂŁo sabe quantas voltas ao redor do sol esta mulher negra nordestina teve que dar para viver hoje sob os aplausos que reconhecem seu talento.
Berço musical
CĂĄtia ainda era Catarina quando a mĂŁe, a professora AdĂ©lia Maria de França, reconhecida como a primeira educadora negra da ParaĂba, lhe apresentou aos livros. Seus preferidos eram os de JosĂ© Lins do RĂȘgo, Graciliano Ramos e JoĂŁo Cabral de Melo Neto, que tinham trechos de suas obras musicados pela menina.
âEu nasci num berço musical. Meu pai adorava âsofrĂȘnciaâ, que naquela Ă©poca nĂŁo tinha esse nome, era tango. E eu toco sanfona por causa disso. E mamĂŁe era muito musical, o rĂĄdio lĂĄ em casa era ligado full timeâ, explica. A paraibana teve uma formação musical erudita na juventude, atĂ© construir sua prĂłpria poesia, que bebe da cultura popular, da tradição regional e tambĂ©m do rock e sua psicodelia. Sua obra ajudou a formatar o que se entende por mĂșsica do Nordeste, que nada mais Ă© do que mĂșsica popular brasileira.
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Na vida adulta, ela se mudou para o Rio de Janeiro. CĂĄtia â que ganhou esse apelido da mĂŁe â acompanhou o movimento de muitos cantores e compositores nordestinos que migraram para o Sul Maravilha para impulsionarem sua arte. O ano era 1972. Cantou em barzinhos e trabalhou como datilĂłgrafa atĂ© encontrar sua âfada madrinhaâ, a conterrĂąnea Elba Ramalho. JĂĄ consagrada, Elba passou a indicĂĄ-la para trabalhos na mĂșsica e no teatro alternativo.
Ă medida que ia ao encontro de sua arte, CĂĄtia lidava com os estigmas e preconceitos de ser uma mulher negra, lĂ©sbica e migrante nordestina naqueles anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. âEra uma implicação, a polĂcia, nĂ©? Queriam ver se pegava a gente com alguma coisa, com erva, sem documento. O problema maior era a gente ser nordestino.â
Disco de estreia

Nessa Ă©poca, CĂĄtia formou uma turma com os conterrĂąneos Vital Farias, Pedro Osmar e ZĂ© Ramalho. Esse Ășltimo, impressionado com suas composiçÔes, produziu 20 palavras ao redor do sol, o primeiro ĂĄlbum de CĂĄtia.
O disco conta com a participação de mĂșsicos do quilate de Dominguinhos, Sivuca, Lucinha Turnbull, Chico Batera, Bezerra da Silva, Lulu Santos, alĂ©m de Amelinha e Elba Ramalho nos vocais. O 20 palavras ao redor do sol seria, anos depois, considerado um clĂĄssico cult e que tem seus exemplares originais em vinil vendidos a preços altĂssimos. O ĂĄlbum traz cançÔes como Kukuaia, Coito das Araras e Quem vai quem vem, atualmente cantadas em unĂssono nos shows por gente com um terço de sua idade.
Tudo indicava que a estreia promissora de CĂĄtia a colocaria no mesmo patamar de Elba Ramalho ou Amelinha, artistas que jĂĄ desfrutavam de reconhecimento e popularidade Ă Ă©poca. Isso, porĂ©m, nĂŁo aconteceu. Mesmo celebrada como uma instrumentista brilhante e com a boa repercussĂŁo do primeiro disco, CĂĄtia nĂŁo ganhou tanto destaque na indĂșstria musical. AlĂ©m da ausĂȘncia de um empresĂĄrio que investisse em sua carreira, sentiu que ser uma mulher negra tambĂ©m pesou.
âEra fĂĄcil se vocĂȘ fosse loira, nĂłrdica, uma Vera Fischer ou Xuxa. Eu nĂŁo era, entendeu? Eu nĂŁo tinha o atributo fĂsico. A minha histĂłria era outraâ. Chegou a lançar Estilhaços no ano seguinte, 1980, mas sem tanto sucesso. Viu-se obrigada a empunhar o violĂŁo e voltar a tocar na noite. âEu tinha aluguel e comida para pagar, voltei a tocar nos barzinhos em Pernambucoâ. E assim se deu.
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Renascimento
Mesmo longe dos holofotes, nunca parou de compor. âEu disse, se eu paro eu caio. Eu componho pra me manter vivaâ, afirma. A artista ampliou sua discografia e, graças Ă internet, viu nos Ășltimos anos muita gente redescobrir seus ĂĄlbuns. Artistas da nova geração da mĂșsica brasileira como Josyara, Juliana Linhares, Martins e Chico Chico sĂŁo fĂŁs declarados de CĂĄtia, que costuma dividir o palco com seus jovens admiradores.
Para o mĂșsico, produtor e professor Daniel Pitanga, mestre em MĂșsica pela Universidade de BrasĂlia (UnB), CĂĄtia faz parte de uma geração de artistas que contribuĂram diretamente para a construção de uma sonoridade da mĂșsica brasileira.
âA obra da CĂĄtia Ă© imensa e vai muito alĂ©m das suas composiçÔes, que por sinal, sĂŁo muito especiais e representam a sua forma de existir e interpretar o mundo. Como compositora, cantora e multi-instrumentista, acredito que essa artista atemporal contribuiu, e muito, com o que hoje entendemos como mĂșsica brasileira, e, sobretudo, ultrapassa essa rĂgida barreira do que Ă© compreendido como mĂșsica âregionalââ.
Pitanga tambĂ©m afirma que se mais pessoas tivessem tido acesso ao trabalho de Catia, Ă© provĂĄvel que ela fosse mais reverenciada dentro do nosso panteĂŁo de grandes artistas. âMas para pensar de uma forma mais positiva, acho que Ă© importante ressaltar que a CĂĄtia, ainda que nĂŁo fosse a artista principal, esteve presente e colaborou nas gravaçÔes de discos memorĂĄveis do acervo da MPB e mais, mesmo que tardiamente, ela hoje pode desfrutar, ainda em vida, de um momento de visibilidade e agenda cheia, realizando shows e turnĂȘsâ.
Apesar de nĂŁo ter conquistado o Grammy Latino, o ĂĄlbum No rastro de Catarina foi aclamado pela crĂtica e integrou as listas dos melhores lançamentos de 2024. A cerimĂŽnia do Grammy tambĂ©m marcou um encontro entre a artista e Lulu Santos, mais de quatro dĂ©cadas depois da colaboração do entĂŁo jovem guitarrista em 20 Palavras ao Redor do Sol.
Sobre os anos Ă sombra, CĂĄtia nĂŁo guarda ressentimentos. âEu vejo tudo que eu vivi como uma ressurreição, porque naquele tempo vocĂȘ, para tocar, tinha que dar o tal do jabĂĄ. A plateia, cada vez que eu canto em qualquer parte do Brasil, predomina de jovens que cantam comigo. Ă um reconhecimento que chega num momento certo, Ă© uma emoção que nĂŁo existia em 1979â.
Prova do sucesso Ă© que os ingressos que esgotaram mais rapidamente para o Festival AgĂŽ, em BrasĂlia, foram para a noite de sua apresentação. Antes do show na capital federal, junto com os mĂșsicos Gean Ramos Pankararu e Cristiano Oliveira, a artista beijou seu violĂŁo, um afago no inseparĂĄvel companheiro de estrada.
Em uma das cançÔes de No rastro de Catarina, CĂĄtia de França canta: âAgora sei porque o velho sozinho fala / Sua alma trabalha / Sua experiĂȘncia nĂŁo cala/ Agora sei por que o cabelo branco Ă© condecoração/ Sabedoria em profusĂŁoâ. Para alegria dos amantes da boa mĂșsica e para a surpresa dos agentes da alfĂąndega, a fĂȘnix paraibana ainda Ă© uma potĂȘncia criativa com muito a compartilhar.
Por Cibele TenĂłrio, da AgĂȘncia Brasil
| © Fabio Rodrigues-Pozzebom/AgĂȘncia Brasil
RĂĄdio Centro Cajazeiras