Zona rural de Floresta, Pernambuco 📸 © Renan Martins Pereira

A literatura e a historiografia frequentemente representaram o sertão nordestino como um lugar de miséria e abandono. No entanto, pesquisa conduzida pelo antropólogo Renan Martins Pereira, baseada em entrevistas com velhos vaqueiros e ex-moradores da área rural de Floresta, no sertão de Pernambuco, apresenta o outro lado da moeda: a lembrança de um tempo de fartura, quando “havia mais peixes nos rios, mais árvores na caatinga e mais alimento na mesa”.

A pesquisa de Pereira, fundamentada em um extenso trabalho de campo realizado desde 2016, incluindo material etnográfico coletado durante a pandemia, busca ressignificar as secas e a abundância não como opostos, mas como categorias que coexistiam no passado, diferenciando-se das condições climáticas e sociais contemporâneas. “A fartura evocada pelos mais velhos não é uma romantização do passado, mas uma crítica ecológica ao presente”, afirma o pesquisador. “Quando eles dizem que antes havia mais fartura, estão, na verdade, apontando para o que se perdeu.”

Pereira é pós-doutorando no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Um produto derivado de seu estudo atual, o artigo Remembering Droughts and Abundance: Ecological Memory in the Semi-arid Region of Northeast Brazil, foi publicado na revista Anthropologica, periódico oficial da Canadian Anthropology Society.

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O artigo mostra como esses moradores mais velhos articulam recordações de escassez e fartura. Nessa memória multifacetada, houve secas, sim; mas também houve abundância – basicamente relacionada à biodiversidade, no caso tratado no artigo. “Os sertanejos falam de uma vegetação nativa mais preservada, de rebanhos numerosos e de maior oferta de alimentos. Essa memória da fartura não exclui a lembrança das grandes secas, mas sugere que houve uma transformação profunda na relação dos habitantes com o meio ambiente”, afirma o pesquisador.

Os relatos de antigos vaqueiros e ex-moradores do campo, como Zé Ferraz, Cirilo Diniz e Antônio José do Nascimento, retratam um sertão em que o gado era robusto, a pesca era abundante e o solo produzia com maior regularidade. “Essa memória não tem um caráter apenas nostálgico, mas serve como um alerta sobre a mudança no uso da terra, a degradação ambiental e o impacto das mudanças climáticas. Os mais velhos não falam apenas de saudade, falam de perda real”, argumenta Pereira.

As mudanças no uso da terra, a expansão da fronteira agrícola e a urbanização alteraram radicalmente o modo de vida no sertão. “Os antigos vaqueiros com quem conversei indicam que a vida no campo sofreu uma reconfiguração drástica. O êxodo rural reduziu a interação humana com a Caatinga e as práticas tradicionais de manejo estão desaparecendo. Muitos dizem que antes havia mais organização na vida do campo, que as festas comunitárias eram frequentes, que existia um sentimento de coletividade que hoje se perdeu”, conta o pesquisador.

Ao mesmo tempo, as secas atuais são percebidas como mais severas e prolongadas. “Hoje, as estações tornaram-se irregulares, os rios secaram e os peixes desapareceram. Essa mudança não é apenas climática, mas também econômica e social”, sublinha Pereira. Ele acrescenta que o conceito de “memória ecológica”, fundamental para o argumento do seu artigo, ajuda a compreender como os sertanejos interpretam essas transformações, não só com base em dados objetivos, mas também por meio de experiências vividas e narradas.

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Em sua análise, o pesquisador recorre ao conceito de “duração” do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). “A memória não é um arquivo estático do passado, mas algo vivo, que transforma a percepção do presente e projeta futuros possíveis”, diz. Essa abordagem permite enxergar as recordações das secas e da abundância como formas de resistência cultural e ecológica.

“A fartura, tal como é recordada, configura um conceito amplo”, explica Pereira. “Ela diz respeito não apenas à quantidade de comida na mesa, mas também à relação das pessoas com a terra, ao respeito pelos ciclos da natureza, à segurança que vinha de um ambiente previsível. Hoje, muitos dos meus interlocutores dizem que essa fartura acabou.”

Ao ouvir as vozes dos mais velhos e contextualizar suas memórias no âmbito das crises climáticas e econômicas atuais, a pesquisa de Renan Martins Pereira reconfigura o entendimento do sertão. “Mais do que um espaço de sofrimento, o semiárido é também um lugar de vida, de saberes ancestrais e de histórias que desafiam a noção de um passado perdido”, conclui o pesquisador. Em um mundo em crise ambiental, as memórias do sertão podem oferecer lições valiosas sobre a relação entre a humanidade e a natureza.

Por José Tadeu Arantes | Agência FAPESP

|📸 © Renan Martins Pereira

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