Muitas galinhas, pouca variedade genética: granjas são ‘chocadeiras’ de doenças como a gripe aviária
📸 © Mark Stebnicki/Pexels

Na granja em Montenegro, na região metropolitana de Porto Alegre, onde foi detectado o vírus causador da gripe aviária, viviam cerca de 17 mil frangos. A grande maioria deles eram fêmeas dedicadas a pôr ovos fertilizados para serem vendidos a outras granjas e chocados em chocadeiras.

Essas galinhas tinham uma genética privilegiada segundo padrões do mercado de carnes. Eram as chamadas matrizes, selecionadas a dedo para gerar cada vez mais frangos com características ideias para serem abatidos e vendidos como mercadoria.

Galinhas como essas são especiais. São criadas em condições melhores do que a dos frangos de corte, nascidos para o abate. Apesar disso, assim como as milhões de aves que o Brasil cria para virarem produtos, elas vivem aos milhares em grandes galpões. Quase não têm acesso à luz natural nem ao ar livre.

Vivem num espaço ideal para a produtividade econômica, mas propício à proliferação de doenças que acometem os animais. Das 17 mil galinhas da granja de Montenegro, cerca de 15 mil morreram de gripe aviária. As outras 2 mil tiveram que ser abatidas.

Esses espaços são propícios também a mutações de vírus e bactérias. Neles, uma doença de bicho pode ser convertida numa doença de gente. Eles, portanto, representam também um risco à saúde da população como um todo.

“O confinamento em ambientes mais fechados e em elevadas densidades facilita a propagação de doenças e pode reduzir a imunidade dos animais devido ao estresse. Como resultado, os antimicrobianos, especialmente os antibióticos, são frequentemente utilizados. O uso indevido de antimicrobianos contribui para o aumento da ameaça das superbactérias, criando uma preocupação global entre profissionais de saúde, pesquisadores e autoridades sanitárias. Isso representa um sério risco para a saúde e o bem-estar dos animais e da população humana mundial”, descreve um relatório de 2024 sobre as condições de criação de frangos no Brasil.

O texto foi elaborado pela Alianima, uma organização que dá consultorias e suporte técnico à indústria alimentícia. Patrycia Sato é diretora técnica, médica veterinária e presidente da entidade. Segundo ela, o padrão de criação de aves no Brasil precisa melhorar pelo bem-estar animal e até para a segurança biológica do país.

“Estamos falando de dezenas ou até centenas de milhares de aves dentro de um galpão. Elas têm uma variabilidade genética baixa, porque passaram por uma seleção genética para ter peito maior, coxa maior, crescerem mais rápido. Se você tem baixa diversidade genética e um vírus novo, você está muito mais propenso a ter a dizimação desses animais numa doença. E se houver uma mutação, essa doença pode atingir humanos também – como já atingiu”, disse ela, lembrando que a gripe aviária também pode acometer pessoas.

“O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) vem alertando constantemente sobre o risco crescente de pandemias e sobre como a intensificação da agropecuária, especialmente a produção industrial de aves, cria condições que favorecem o surgimento e a disseminação de doenças zoonóticas – aquelas que passam dos animais para os seres humanos. Mesmo assim, os líderes mundiais parecem não estar suficientemente preocupados”, confirmou Fernanda Vieira, diretora de Bem-Estar Animal e Pesquisa da Sinergia Animal, organização dedicada à proteção animal que atua no Brasil, em outros países da América Latina e da Ásia.

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Modelo mundial

Sato, da Alianima, lembrou que as condições descritas por ela não são exclusivas do Brasil. Outros países do mundo também adotam o mesmo padrão de criação de frangos visando ao aumento da lucratividade de granjas.

Ela ressalta que hoje o Brasil é o terceiro maior produtor de frango do mundo, ficando só atrás dos Estados Unidos e China. Em 2024, foram quase 15 milhões de toneladas de frango produzidas aqui. O Brasil também o maior exportador. Vendeu para o exterior 5,2 milhões de toneladas de carne de frango. Para que isso fosse possível, o modo de produção industrial de aves precisou ser disseminado pelo país.

“Você tem um padrão de criação no Sul do país e outro no Centro-Oeste. Mas, em ambos, estamos falando de ‘mares de frangos’. Não é possível enxergar o piso dos galpões. As galinhas vivem sobre um substrato para absorver os dejetos, as fezes. E isso não é trocado todo dia.”

Dentro da norma

Uma matéria publicada pelo jornal Folha de S.Paulo no último dia 16 informa que um relatório do Ministério da Agricultura também indica que a forma de criação de frangos no Brasil põe em risco a saúde animal e humana.

“O aumento da densidade [de aves em granjas] resulta em estresse crônico nos animais, com impactos na saúde animal, na saúde humana e no ambiente. Animais com estresse crônico são menos resilientes, apresentando doenças recorrentes em consequência de práticas usuais e condições que lhes são estressantes”, afirma um trecho do relatório reproduzido pela reportagem.

Sato, da Alianima, disse que, apesar dos problemas, essa forma de produção está de acordo com as normas vigentes.

Luizinho Caron, veterinário e pesquisador da Embrapa Suínos Aves, disse que as normas brasileiras estão entre as mais modernas do mundo. Abrangem também requisitos de bem-estar animal. Segundo ele, por ter essas normas é que o país consegue exportar carne de frango para mais de 150 países.

Ele disse que o controle sanitário das granjas é intenso para evitar a contaminação de animais e pessoas. Admite, no entanto, que o risco sanitário existe. “Ele existe, mas é tratado”, ponderou. “O ministério tem um programa para redução do uso de antimicrobianos [entre eles, os antibióticos]. Os animais selecionados são também para resistir a doenças.”

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Dilemas

O pesquisador ainda acrescenta que, na produção de frangos soltos, as aves também estão suscetíveis a doenças, assim como à ação de predadores e até parasitas – risco que são minimizados em granjas. Para ele, as granjas são a forma de garantir a produção de frangos para uma sociedade que demanda muita carne.

“Galinhas criadas ‘no fundo de um quintal’ não são uma fonte de alimento garantida nem para uma família, muito menos para uma sociedade”, afirmou. “Precisamos de criações para conseguir fornecer comida com segurança.”

Sato reconhece que há um dilema hoje sobre a criação de aves. Ao mesmo tempo que o modelo hegemônico tem problemas e risco à saúde, alternativas a ele teriam dificuldade de suprir tamanha demanda por frangos sem afetar preços.

“Qualquer proposição passaria por uma redução da produção. O que temos hoje é: como fazemos para produzir o máximo possível, no menor tempo possível, para ter a melhor eficiência econômica possível.”

Alternativa

Bruno Diogo, do setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), lembra que a criação de frangos visando à maximização dos lucros é tocada por grandes empresas do setor de carnes, como a Sadia e a Perdigão.

Essas companhias são parceiras de camponeses. Fornecem os animais, os suporte técnico, a ração e, ao final, recebem os frangos. Nessas parcerias, são elas que determinam a forma que o animal deve ser criado, e o modelo é a granja muitos animais juntos. “Uma galinha tira o pé, a outra coloca no lugar”, ironiza.

Ele ressalta, contudo, que há alternativas. “Existem vários modelos que hoje levam em consideração o que a gente chama de conforto e bem-estar animal. São modelos extensivos ou semi-intensivos. A galinha fica no pasto ou cisca num período e outro entra para a granja”, descreveu. “Isso gera qualidade nos ovos e na carne.”

Diogo disse que criações como essa não necessariamente tornam o frango mais caro ao consumidor, principalmente se essa forma de produção também receber incentivos governamentais destinados ao agronegócio. Ele citou como exemplo a produção de ovos orgânicos do Grupo Raiar, fundado em 2021.

“O dilema na verdade é ir contra os interesses das grandes corporações”, afirmou. “Precisamos descentralizar o monopólio da grande indústria sobre a produção de aves, e colocar toda essa responsabilidade sobre cooperativas, associações, grupos comunitários que poderiam ao descentralizar mudar a lógica também do manejo.”

A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa a indústria da avicultura e da suinocultura do Brasil, afirmou, em nota, que a granja de Montenegro “cumpre os requisitos de biosseguridade estabelecidos pelo Ministério da Agricultura e normas internacionais referentes, que foram aplicados inclusive durante a ocorrência sanitária”.

A entidade afirma ainda que “os requisitos vigentes admitem variações de pontos conforme o tipo de produção (se é bisavós, avós, matrizes ou frangos de corte) ou sistema de produção, incluindo taxa de lotação adequada ao bem-estar dos animais – sempre conforme os regramentos da Organização Mundial de Saúde Animal – e uso de estratégias para conforto térmico, alimentação e ambiência adequada”.

“Não é possível delegar a um único ponto a maior ou menor incidência de riscos sanitários. O modelo de criação em galpões, por exemplo, tem taxa de exposição significativamente menor a riscos sanitários (como a influenza aviária) em relação ao modelo de produção extensivo. E o modelo aplicado no Brasil é altamente seguro. Prova disso é que somente após cinco décadas de produção industrial, o Brasil registrou seu primeiro e único caso de influenza aviária. Todos os outros grandes produtores, como União Europeia e Estados Unidos, já haviam registrado a enfermidade muitos anos antes em sua produção comercial”, finaliza o texto.

Brasil de Fato procurou o Ministério da Agricultura para tratar da forma de criação de frangos no Brasil e do relatório do órgão sobre o tema. Não recebeu resposta.

Por Vinicius Konchinski, do Brasil de Fato

|📸 © Pixabay

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