Por Amanda Haikal (sob supervisão de Ferraz Jr e Gabriel Soares), do Jornal da USP

Através de analogias, usuários mascaram teor sexual para criar o chamado “softporn”, pois imersas nas redes sociais crianças têm contato despretensioso com esse tipo de conteúdo
📸 © Kampus Production/Pexels

As políticas de uso das redes sociais mais populares do mundo proíbem expressamente o compartilhamento de conteúdo sexual. No Instagram e no Facebook, redes da empresa Meta, a proibição inclui, além de conteúdos explícitos, a representação de pessoas em atividades ou em posições excessivamente provocativas. No entanto, através de sugestões visuais e analogias, os usuários burlam as regras e criam um conteúdo sexual que não é explícito, mas tem alta carga sugestiva. Esse tipo de conteúdo é chamado de softporn,  em tradução livre, pornografia suavizada. 

Mesmo que as principais plataformas não aceitem usuários com menos de 13 anos, 60% das crianças de 9 a 10 anos que estão na internet têm conta em pelo menos uma rede social, aponta a pesquisa TIC Kids Online Brasil, produzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Por estarem imersas nas redes sociais, as crianças têm contato de maneira despretensiosa com o softporn. É aí que mora o perigo.

Renata Panico Gorayeb, psicóloga do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, afirma que, embora tenha teor sexual mascarado, o softporn tem consequências tão graves às crianças quanto a pornografia explícita. “Esse tipo de conteúdo sexual banaliza os relacionamentos, o que vai fazer com que a criança entenda as relações de uma forma muito fútil, superficial e sexualizada.”

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A psicóloga, que é especialista em Desenvolvimento Infantil, explica que o contato precoce com conteúdo sexual impacta a autoestima da criança e também favorece o acontecimento de uma violência sexual, uma vez que a criança começa a acreditar que as cenas que está assistindo nas redes sociais são aceitáveis para qualquer pessoa, independentemente da faixa etária. Essas consequências são visíveis na rotina da criança, que quando exposta ao softporn manifesta comportamentos atípicos que funcionam como alertas aos pais de que algo está errado. Segundo Renata, os sinais mais comuns são o envergonhamento do próprio corpo diante dos pais e a proximidade forçada a outras crianças ou até adultos. 

“É preciso que os pais estejam atentos a como essa criança se aproxima de outras crianças, jovens e até mesmo adultos, porque ela pode se aproximar de maneira inadequada, ficando perto demais e encostando, já que ela passa a acreditar que o que está vendo nas redes é normal”, diz a psicóloga. 

O contato das crianças com o softporn acontece porque há brechas nas políticas de moderação das redes sociais que permitem contornar as regras de conteúdo sexual. Porém, essas plataformas não estão sujeitas apenas às próprias políticas. A Lei 12.965 de 2014, chamada Marco Civil da Internet, é o instrumento que regula a atividade nas redes sociais. Cíntia Rosa Pereira de Lima, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, explica que essa lei permite que o provedor do conteúdo seja notificado para retirar um conteúdo sexual do ar. “É dever da sociedade e do Estado, determinado pela Constituição Federal, zelar pela proteção integral da criança e, por isso, qualquer pessoa pode denunciar a rede social para que imediatamente e sem ordem judicial seja retirado o conteúdo do ar.”

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No Kwai, uma rede social de vídeos curtos, além das crianças estarem expostas ao softporn, elas também são vítimas da produção desses conteúdos. Em janeiro deste ano, o Núcleo, uma iniciativa jornalística que produz conteúdos sobre o impacto da tecnologia digital, fez uma análise da plataforma acessando diariamente, durante 40 dias, para verificar quantos conteúdos eram assistidos até que o usuário deparasse, despretensiosamente, com vídeos de influenciadoras digitais mirins em contextos de duplo sentido. As cenas não contém nudez, mas incluem menores em situações sexualmente sugestivas, como chupando picolés e experimentando shorts curtos. 

Denúncias de ex-funcionários do Kwai sobre a disponibilização de cenas sugestivas incluindo menores levaram à instauração de um inquérito civil pelo Ministério Público Federal em janeiro deste ano. A professora Cíntia esclarece que investigações de casos como esse podem acontecer por conta do Marco Civil da Internet, que permite que os provedores dos aplicativos sejam responsabilizados civilmente pelo conteúdo pornográfico, inclusive o com teor sexual mascarado, que envolva criança ou adolescente, ou que tenha apelo ao público infantojuvenil.

“Para essa investigação acontecer, as associações que têm a missão de defender os direitos das crianças precisam entrar com uma ação no Ministério Público, pedindo pela indisponibilidade desse conteúdo, fundamentando em normas do Estatuto da Criança e do Adolescente”, diz a professora.

Além do softporn estar espalhado pelas redes sociais, o alcance é alto porque o algoritmo das plataformas impulsiona conteúdos sugestivos recomendando aos usuários. Um estudo da AlgorithmWatch, uma organização não governamental sediada em Berlim, revelou que, apesar das regras contra a nudez no Instagram, o algoritmo pode amplificar a visibilidade de imagens sexualizadas, como postagens com mulheres de biquíni ou roupa íntima, que têm 54% mais chance de aparecerem na página inicial. Em contraste, publicações com fotos de comida ou paisagens têm 60% menos chances de aparecer. 

Cíntia destaca que “ao impulsionar ou bonificar o engajamento desse tipo de material, o acesso é facilitado e há um apelo para que ele seja acessado. É preciso uma delimitação do algoritmo para evitar aumentar o alcance de conteúdos apelativos que envolvam crianças ou que incluam elementos do universo infantil para sexualização”.

Mesmo com as regulamentações legais da tecnologia, para a docente o uso saudável das redes sociais depende da educação midiática. De acordo com a Unesco, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, a Ciência e a Cultura, a educação midiática visa a suscitar e incrementar o espírito crítico dos indivíduos, incluindo crianças, para ajudá-los no uso responsável da internet. “Existe uma falsa sensação de que na internet os fatos não são reais e, portanto, não teriam consequências no mundo físico, o que é mentira. Assim, a educação é a chave para as pessoas serem críticas e ficarem conscientes dos riscos a que estão expostas nas redes sociais”, diz Cíntia.

Como forma de conscientização sobre as redes sociais, a psicóloga Renata também ressalta a importância de regular o que as crianças publicam nas plataformas, evitando a exposição da própria imagem e de dados pessoais. Além disso, Renata afirma que os pais devem monitorar as páginas que são acessadas, restringindo sites e aplicativos que disponibilizam conteúdos sexuais e sugestivos e também se atentando às propagandas que estas redes apresentam.

“Os pais precisam estar atentos às propagandas porque existem regras rígidas para se montar um aplicativo, mas não existem regras tão firmes para as publicidades. Por isso, é muito comum em um aplicativo educativo, infantil, encontrarmos uma propaganda com cunho sexual que vem disfarçada de uma brincadeira, de uma piada”, finaliza Renata.

|📸 © Tima Miroshnichenko/Pexels

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