A categoria das trabalhadoras domésticas é particularmente vulnerável na crise do coronavírus. As profissionais têm sido expostas sistematicamente a riscos de contaminação sem poderem se isolar. Com o fim do auxílio emergencial, a situação piora e deixa desamparada a categoria, estimada em mais de 6 milhões de trabalhadores.

Denúncias enviadas ao Ministério Público do Trabalho no Brasil ilustram abusos e violações cometidas contra as trabalhadoras. A plataforma de jornalismo de dados Gênero e Número teve acesso a essas denúncias, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), para o projeto “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, em parceria com o Instituto Ibirapitanga.

Veja trechos de alguns dos relatos:

Empregada doméstica que presta serviço em residência está sendo obrigada a trabalhar, mesmo com ambos os patrões apresentando sintomas de covid-19 e o exame clínico ter atestado positivo.
Brasília (DF)

A referida senhora também compartilha máscara com sua empregada doméstica quando determina que saia da residência para cumprir alguma ordem.
Cachoeiro do Itapemirim (ES).

A trabalhadora relatou estar há cem dias trabalhando diretamente, desde o isolamento social decorrente da pandemia. Ela é empregada doméstica e mora no local de trabalho, Foi contratada para ser babá, porém, há meses acumula as funções de cozinheira, sem acréscimo salarial. Ela não tem folga em domingos e feriados, trabalha ininterruptamente e, apesar de ter passagens compradas para visitar a família, em Belém (PA), desde março, a patroa não a libera. Além disso, inexiste recolhimento regular das contribuições sociais e do FGTS. A trabalhadora não tem parentes em São Paulo e necessita ver os pais na cidade de origem.
São Paulo (SP)


Como outras comoções causadas por tragédias no Brasil, as mortes emblemáticas de Cleonice Gonçalves, 63, primeira vítima da covid-19 no estado do Rio de Janeiro, infectada pelos patrões que haviam chegado da Itália, e de Miguel Otávio Santana da Silva, deixado sozinho no elevador pela patroa de Mirtes Renata, no Recife (PE), não provocaram mudanças estruturais em uma das relações trabalhistas mais antigas e desiguais do país.

Desemprego alto e maioria negra

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2018, do IBGE, a categoria reúne cerca de 6,2 milhões de pessoas, sendo que 92% são mulheres e, entre elas, 68% são negras.

Somente as 3,9 milhões de trabalhadoras negras domésticas do Brasil, como Cleonice e Mirtes Renata, representam mais que o triplo do total de caminhoneiros no país, recentemente incluídos pelo governo federal no grupo prioritário da vacinação contra o novo coronavírus.

De todas as categorias profissionais deste primeiro grupo que vai ser vacinado, trabalhadores domésticos só perdem em número para os profissionais de saúde, que totalizam 6,6 milhões de pessoas.

Impacto no mercado de trabalho

Sobre o impacto da pandemia no mercado de trabalho, o IBGE mostra que o trabalho doméstico foi o segundo setor mais atingido no país.

Segundo a Pnad Contínua, divulgada em 28 de janeiro, 1,5 milhão de postos de trabalho doméstico foram perdidos de setembro a novembro de 2020, último período analisado.

Entre as dez atividades econômicas avaliadas, o trabalho doméstico foi a segunda com maior perda (-24,2%) na comparação com o mesmo período de 2019, atrás apenas do setor de alojamento e alimentação (-26,7%). Em números absolutos, as perdas são iguais: 1,5 milhão de postos de trabalho.

Processos na Justiça do Trabalho são difíceis

Dados acessados pela Gênero e Número, também via LAI, nos oito primeiros meses de 2020, no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT2-SP), mostram que 461 processos relacionados à classe foram registrados na instância.

Dos 2.358 assuntos abordados nos processos (cada processo pode conter mais de um assunto), 72% se referiam ao descumprimento de 15 direitos básicos, garantidos pela PEC das Domésticas e pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que incluem reconhecimento de relação de emprego, pagamento de 13° salário e de multa de 40% do FGTS.

“Há baixa judicialização, sim. É dificílimo judicializar”, diz Junia Raymundo, procuradora regional do trabalho no Ministério Público do Trabalho (MPT) no estado do Rio de Janeiro. A instância tem limitações para atuar no apoio à categoria, tendo em vista que o MPT não pode agir contra violações individuais, a não ser que firam a dignidade humana, como foi o caso de Madalena Gordiano, resgatada no final de 2020 com ajuda da instituição, após viver 38 anos em condições análogas à escravidão trabalhando para uma família em Minas Gerais.

Denúncias de abusos

Ainda assim, o MPT recebeu nos cinco primeiros meses da pandemia 27 denúncias de abusos ou ilegalidades, sendo seis delas diretamente relacionadas à crise sanitária, como as mencionadas no início da reportagem.

O TRT2-SP não disponibiliza as petições iniciais que dão origem aos processos, apenas os assuntos de cada um deles, de modo que não é possível verificar a relação com o contexto da pandemia. Mas os dados acessados até 26 de agosto de 2020 mostram como a crise sanitária reduziu o número de processos:

  • 56% deles foram iniciados ao longo de cinco meses, após o decreto de estado de emergência no estado, que determinou a quarentena, em 21 de março de 2020
  • 44% foram registrados em um período bem menor, de dois meses e meio, de 15 de janeiro à data do decreto

? Foto: Pxhere

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