A pouco mais de 30 anos atrás a ideia de mundo conectado habitava apenas as mentes dos entusiastas da informática e os roteiros das produções de Hollywood, o ciberespaço era tido como uma “outra dimensão” onde participar desse espaço exigia uma série de equipamentos e de conhecimentos complexos, que não eram acessíveis para a grande parcela da sociedade, estar conectado na rede era parte de um processo que demandava tempo e também dinheiro, a internet apesar de já ser um amontoado de informações ainda era algo muito singelo se comparado com o pós anos 2000, para acessar conteúdos mais seletos era necessário caçar e pilhar na internet, em uma referência direta aos navegantes e piratas do mar. A medida que o tempo avança a tecnologia sofre mudanças e aperfeiçoamentos, hardwares que até então custavam uma fortuna despencam de preços, softwares extremamente complexos tornam se fáceis, usuais e intuitivos, a internet acaba por moldar se de uma forma que passa a ser atrelada ao cotidiano como um serviço, uma necessidade e uma ferramenta.

            Para notarmos e compreendermos de forma clara os impactos da internet e suas mudanças decorrentes na vida das pessoas, precisamos voltar a atenção um pouco para o passado e entender a relação da sociedade e a tecnologia de sua época. Para isso será analisado três obras cinematográficas concebidas em épocas diferentes e com visões próprias de tecnologia. Comecemos com os anos de 1980, nessa parte do tempo a tecnologia era vista como algo muito mais físico, a eletrônica estava a toda potência, nesse contexto começam a aparecer ainda de forma muito tímida os primeiros computadores pessoais, a lógica mecânica X eletrônica pode ser observada no filme Blade Runner de 1982 dirigido por Ridley Scott, nele o ápice da tecnologia era um misto de hardware eletrônico mais mecânico, a ideia do software era praticamente ignorada nesse contexto. Nos anos de ouro da “New Wave” o computador pessoal e a própria internet ainda eram tecnologias muito restritas a um pequeno nicho de especialista o que acaba dando uma “áurea nerd” pouco atrativa para a rede. Nos anos de 1990 a internet assume um novo papel, ela começa a ser tratada como a “promessa para o futuro” que irá interligar os computadores. Após o lançamento do Windows 95 com o browser Internet Explorer o serviço de  Word Wide Web torna se extremamente popular e passa a ser a cara da internet, entretanto vale a pena retomarmos que a internet ainda estava longe de ser da forma que conhecemos hoje, nos anos 90 nos deparamos com o paradigma da conexão e desconexão, placas, modens, cabos, provedores, tudo isso era parte de uma complexa e cara infraestrutura que tornava possível o acesso à internet. Essa ideia está presente na ficção científica Matrix filmes lançado no ano de 1999 dirigido por Lana Wachowski e Andy Wachowski é concebido sobre uma identidade cyberpunk tem em seu cerne uma luta entre homens e máquinas que acontece em um futuro distópico onde as máquinas estão ganhando. Como? Através de um software com inteligência artificial que de forma recursiva aprende novas maneiras de perpetuar sua existência. Na abordagem do Matrix podemos perceber claramente uma mudança de paradigma em comparação a obra Blade Runner, se nos anos 80 a mecânica e a eletrônica eram as tecnologias que baseavam o desenrolar do filme de  Ridley Scott, na obra das irmãs Wachowski o que permeia a trama é o software, uma forte alusão ao contexto tecnológico da época onde o software já fazia parte do cotidiano das pessoas e já começava a esboçar novas possibilidades com o avanço da inteligência artificial, a ideia de conexão e desconexão presente no filme através do telefone pode situar o contexto em que o filme foi concebido além de nos induzir a refletir a respeito do ciberespaço como uma “outra dimensão” em que precisamos de um portal (computador) para acessá-la. Nos anos 2000 nos deparamos com uma nova e crescente mudança, os usuários passavam a usar a internet cada vez mais e por mais tempo. O surgimento das redes sociais em 2002 colocou à tona a possibilidade da espetacularização da vida cotidiana, surge então uma nova forma de mídia em que o espectador é ao mesmo tempo o espetáculo.

            O surgimento das redes sociais marca uma nova etapa para a internet e para os seus usuários, a comunicação de forma horizontalizada com uma ou mais pessoas colou em questão o modelo dos veículos tradicionais de comunicação, as redes sociais digitais são espaços em que informações dos mais divergentes campos estão presentes, onde o filtro de seleção é feito pelo usuário e de acordo com seus interesses. Todo esse conteúdo faz parte de um gigantesco ecossistema comumente apelidado de nuvem, o Cloud Computer ou computação em nuvem é um termo cunhado para designar uma computação descentralizada onde os dados estão espalhados em diversos nós e acessíveis a qualquer hora e lugar. A computação em nuvem vem sendo responsável por diversas mudanças de paradigmas no campo da informática, a própria Inteligência Artificial vem sendo constantemente reestrutura a partir dos novos modelos que vão surgindo com o próprio auxilio do usuário, ou seja, a máquina aprendendo com suas ações. Her, um filme de 2013 escrito e dirigido por Spike Jonze, ilustra muito bem essa relação entre homem e software, na trama um homem com problemas afetivos e com dificuldades para relacionar se com pessoas, encontra tudo o que busca afetivamente em um software de computador, a Samantha, nome dado pelo protagonista ao sistema, é um exemplo de software em nuvem que coleta, armazena e processa todos os dados que a ele são enviados, e que tem como principal objetivo satisfazer os desejos de seus usuários. Muito parecido com o processo de formação de bolha ideológica que ocorre nas redes sócias digitais a Samantha acaba por tornar se um “espelho” das emoções e aspirações de seus usuários, nela é despejado milhares de informações pessoais que servem para nortear seu comportamento de acordo com as preferências de seu usuário, em contrapartida é retornado sentimentos, diálogos e emoções fruto de um processo de captura, tratamento e análise de dados. Her caracteriza uma outra ambientação em que o software e a conectividade tomam a dianteira do processo de comunicação e acabam por ofuscar o hardware, a parte física da tecnologia, isso caracteriza a mais recente fase em que nos ambientamos na internet, diferentemente de Matrix que necessitava de uma conexão apara acessar o mundo “virtual” em Her o ciberespaço é fundido com o real, não existe tempo ou lugar para se conectar, toda hora é hora e todo lugar é lugar. Isso pode nos ser tomado como um exemplo referente a Falácia da Caixa preta, uma crença de que todos os conteúdos de todas as mídias estariam centralizados em um único meio, quando na verdade a ideia defendida por Jenkins (Cultura da Convergência, 2008) é de que a convergência se dá na distribuição dos conteúdos para diversos meios, ou seja o que converge é o software se adaptando a diversos modelos de hardware.

AS PESSOAS SÃO ALICIADAS, ESTIMULADAS, OU FORÇADAS A PROMOVER SE UMA MERCADORIA ATRAENTE E DESEJÁVEL

Zigmunt Bauman

            Samantha é um grande exemplo de software “multiconectado” que pode estar presente em diversos ambientes ao mesmo tempo. A ideia de um programa de computador conquistar nossos sentimentos humanos não é algo do qual estamos longe, o aplicativo Love Plus desenvolvido pela Nintendo em 2009 busca simular um relacionamento afetivo com seu usuário, nele o utilizador é levado a uma experiência onde interage de forma emotiva com os personagens do jogo, dedicando tempo, atenção e afeto para eles. O mundo das rápidas conexões é também palco das desilusões amorosas e dos relacionamentos frustrados, o app oferece uma companhia sempre disponível, alegre, comprometida e que perdoa todas as falhas humanas do jogador, algo muito próximo do que a Samantha oferece ao protagonista em Her, um pacote sedutor para uma geração de pessoas cada vez mais solitárias. A internet atrelada as redes sociais digitais e ambientada em uma sociedade de consumo traz uma séria de comportamentos ainda não experimentados por outras épocas, a sociedade do consumo caracterizada por sua rápida mudança e seu apelo ao “novo” toma as redes sociais e seus usuários, envolvendo a em um sistemático processo de venda, troca e consumo de experiências, para o Sociólogo Polonês Zigmunt Bauman “As pessoas são aliciadas, estimuladas, ou forçadas a promover se uma mercadoria atraente e desejável”,  a rede acaba por exigir de seus usuários valores antes inquestionáveis como emoções, privacidade e sentimentos onde esses são transformados em mercadoria, a internet acaba por construir um ambiente em que somos consumidos e consumidores.

            Os filmes aqui abordados apresentam desenvolvimentos e épocas diferentes mas podemos toma-los como exemplo das mudanças que ocorreram e ainda ocorrem em meio ao ciberespaço, o que antes era um ambiente puramente técnico e impopular tornou se um emaranhado de dados construído por bilhões de usuários que através de uma constante exposição conseguem alimentar sistemas computacionais gigantescos que operam de forma descentralizada resultando em uma infinidade de novas experiências e possibilidades que exigem cada vez mais tempo e atenção de seus utilizadores.

Apesar de todos os seus infortúnios a internet representa um marco na sociedade, a forma como a rede apropriou se de diversas formas de mídia dá espaço para uma nova ordem da informação em que a horizontalidade dos usuários e a disponibilidade constante da rede possibilita o sustento de um denso sistema de conhecimento. O acesso rápido a informação caracteriza uma nova etapa da sociedade, Bauman afirma que “Na era da informação a invisibilidade é equivalente a morte”, hoje a internet é presente no cotidiano de 51%, da população mundial segundo o site internetworldstats.com. A constante disseminação da rede em um pouco mais de 60 anos resultou em metade do mundo conectado, podemos imaginar uma gama de novas mudanças que o avanço da inteligência artificial e a difusão do acesso à internet causarão na sociedade, a forma como as pessoas utilizam seus objetos do cotidiano está prestes a mudar graças ao avanço da chamada “internet das coisas”, que busca levar novas experiências de conectividade e interação aos usuários. O ciberespaço está em constante fusão com o mundo real a dissociação desses dois ambientes torna se impensável a medida que o tempo avança, para a sociedade resta acompanhar o avanço da rede e tentar não ser engolida pela criatura.

Leonardo Lins

Referências:

BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008.

JENKINS, Henry, Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008    

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