🚔🚑 Cerca de 62% das mortes que ocorrem em prisões brasileiras são causadas por doenças
Por Júlia Galvão, do Jornal da USP
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o sistema carcerário brasileiro apresentava cerca de 900 mil presos até o terceiro semestre de 2022. Desses, 44,5% são presos provisórios, ou seja, estão encarcerados sem a devida ocorrência de um julgamento. Apesar da quantidade de detentos, o Brasil, até junho de 2019, contava com apenas 460 mil vagas, dado que revela um cenário marcante do sistema prisional nacional: a superlotação.
Entre as diferentes observações que esse dado pode revelar sobre o sistema de justiça do País, a ausência de adequações para convivência e manutenção sanitária dos detentos merece destaque. Em um estudo recentemente divulgado pelo CNJ, revelou-se que cerca de 62% das mortes que acontecem nas prisões são causadas por doenças como insuficiência cardíaca, pneumonia e tuberculose.
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Além disso, o relatório indica que é comum que as mortes sejam notificadas sem o devido procedimento descritivo necessário, assim, muitas delas costumam ser detalhadas como “naturais”, quando, na realidade, são consequências diretas da negligência presente com relação à manutenção do sistema de saúde básico. É também importante notar que o acesso à saúde é garantido pela legislação nacional, apesar de não ser observado na prática em diversos momentos. Segundo Mariana Scaff Haddad Bartos, pesquisadora do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, a condição de vida dos presos no Brasil está diretamente ligada a um sistema que exclui, perpetua vulnerabilidades e que viola o exercício de direitos — inclusive o direito à saúde.
“No geral, o que a gente vê são locais insalubres, marcados por precariedade, sem estrutura e sem condições materiais mínimas. Só para ilustrar com os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), eu estou falando de um déficit de mais de 200 mil vagas”, completa Mariana. Assim, é possível notar que a arquitetura carcerária não parece respeitar os aspectos intrínsecos para a qualidade de vida dentro das prisões.
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Saúde
Entre os diferentes dados que foram levantados pelo CNJ, nota-se que a chance de os presidiários contraírem tuberculose, por exemplo, é 30 vezes maior que a do resto da população. Além disso, o risco de morte por enfraquecimento extremo é 1.350% maior para esses indivíduos. Para a pesquisadora, esses dados podem ser explicados pelas condições insalubres que são oferecidas e pela superlotação das celas, que influenciam diretamente a transmissão de doenças.
A baixa entrada de luz, os espaços com pouquíssima ventilação, a alta taxa de umidade e a presença constante de mofo nas celas são alguns dos fatores que contribuem para a inadequação desses espaços. Outro fator que contribui com esse cenário é a má alimentação dos presos. Mariana explica: “Quando eu falo em alimentação, eu também falo de acesso à água potável. Muitas pesquisas recentes mostram que a alimentação dentro do sistema carcerário está muito longe de ser adequada, ela é insuficiente, ela é escassa e, em alguns relatórios, é utilizada a expressão “pena de fome” para trazer à tona a questão da insegurança alimentar”, reflete a pesquisadora.
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A questão da higiene é outro aspecto que afeta diretamente a saúde dos detentos. Assim, é notável a falta de condições básicas necessárias para a manutenção da integridade física desses sujeitos. Segundo a especialista, a falta de produtos como sabonete, papel higiênico e absorventes é comum e essas demandas acabam sendo cumpridas pelos familiares dos presos por meio dos conhecidos “jumbos”, que costumam contar também com cobertores, remédios e alimentos.
Durante a pandemia de covid-19, as falhas históricas e problemas associados à questão sanitária parecem ter se multiplicado dentro das prisões brasileiras. Mariana explica que “um presídio é um laboratório ideal para a propagação de um vírus”, já que esses locais caminham na contramão da maioria das recomendações realizadas para controlar o avanço da doença.
É também possível notar que os problemas presentes dentro do sistema carcerário brasileiro funcionam como um reflexo das desigualdades sociais presentes no País. Assim, muitas vezes esse sistema funciona como instrumento de segregação entre sujeitos. “Uma pessoa ter mais chances de morrer porque ela está no cárcere é uma iniquidade de saúde, não é aceitável. Isso é determinação social de saúde, ou seja, a saúde das pessoas está sendo determinada por questões sociais e não biológicas”, completa Mariana.
A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) também prevê que a saúde dentro do sistema penitenciário seja organizada por Equipes de Atenção Básica Prisional (EABPs) — que têm o papel de qualificar os serviços atrelados a essa área. Segundo a pesquisadora, essas equipes são multifuncionais e se organizam de diferentes formas, dependendo de alguns critérios, como o número de presos, o tamanho do sistema prisional e o perfil epidemiológico da unidade.
Estado de Direito
O professor David Teixeira de Azevedo, advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito da USP, explica que os problemas apresentados nas prisões brasileiras não são atuais. Alguns deles são crônicos e podem ser representados pela falta de vagas, pela ausência de auxílio ao preso após o cumprimento de sua pena e pela questão relativa à própria dignidade humana.
Hoje, existem alguns aparatos legais que garantem diferentes direitos aos presos, mas que não funcionam na prática. “Nós temos uma lei de execução penal, a lei 7.210/1984, que é muito boa, mas que fica como uma espécie de utopia jurídico-punitiva, já que os seus dispositivos não são atendidos em larga parte”, explica Azevedo.
O professor reforça ainda que a assistência à saúde nas prisões brasileiras é extremamente precária, assim, o oferecimento de um cuidado preventivo, curativo, farmacêutico e odontológico dificilmente acontece com plenitude. Dessa forma, é notório que não podemos continuar apresentando a terceira maior população carcerária do mundo se os direitos básicos não estão sendo garantidos para essas pessoas.
Para melhorar o cenário atual, o professor analisa que é necessário reduzir o número de prisões. “Não é possível que 41% dos presos sejam presos provisórios. Não é possível que, em 20 anos, de 1990 a 2010 esse tipo de prisão tenha subido 1.253%. Isso é claramente violação do princípio da presunção de inocência, porque o Poder Judiciário está apreendendo desde que haja prova de um fato e da autoria desse fato, sem que haja nenhum requisito processual de cautelaridade”, adiciona o especialista.
Por fim, o professor explica que é necessário passar a olhar com generosidade para o indivíduo que está sendo processado. “Isso é muito difícil, olhar para esse homem e ver alguém que, antes de ser encarcerado prematuramente, é um cidadão revestido de direitos e de garantias constitucionais. É uma pessoa tomada de dignidade pessoal, cujo alcance só pode ser feito mediante o devido processo legal.”
📸 © Luiz Silveira/Agência CNJ
Rádio Centro Cajazeiras