As principais vĂ­timas sĂŁo as mais jovens, solteiras e com menor escolaridade
📾 © Fabio Rodrigues Pozzebom/AgĂȘncia Brasil

Por Mayala Fernandes, do Brasil de Fato

Os casos de feminicídio de mulheres e adolescentes indígenas no Brasil aumentaram alarmantes 500% entre 2003 e 2022. As vítimas são predominantemente jovens, solteiras e com menor escolaridade.

As informaçÔes são do Relatório Técnico sobre Homicídios contra Mulheres e Adolescentes Indígenas no Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal do Paranå (UFPR) em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas.

No total, foram registrados 394 homicĂ­dios de mulheres e adolescentes indĂ­genas. A regiĂŁo Centro-Oeste teve o maior nĂșmero de mortes, com 157 casos e uma taxa de 9,7 por 100 mil. Mato Grosso do Sul lidera com 149 homicĂ­dios.

“A violĂȘncia contra as mulheres indĂ­genas dentro do nosso territĂłrio nĂŁo Ă© cultural, o machismo e o patriarcado penetraram nossas estruturas sociais e se fortaleceram com a colonização”, explica AmauĂȘ Jacinto, indĂ­gena guarani Nhandewa, diretora executiva da Associação de Mulheres IndĂ­genas Organizadas em Rede (Amior).

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“AlĂ©m disso, nunca houve um trabalho eficaz de prevenção e combate a essas açÔes. A negligĂȘncia do estado criou um campo fĂ©rtil para essas violĂȘncias. As mulheres indĂ­genas estĂŁo sozinhas”, afirma.

Embora a violĂȘncia de gĂȘnero seja amplamente discutida na sociedade, pouco se fala sobre as agressĂ”es vivenciadas pelas mulheres indĂ­genas, tanto dentro quanto fora das aldeias. O relatĂłrio revela que estas mulheres estĂŁo expostas a diversas formas de violĂȘncia, incluindo fĂ­sica, psicolĂłgica, ameaças e humilhaçÔes.

AlĂ©m disso, 28,7% dos homicĂ­dios ocorreram no domicĂ­lio, indicando desafios relacionados Ă s dinĂąmicas familiares. Outros 18,8% dos casos ocorreram no hospital, indicando que uma parcela significativa dos Ăłbitos ocorre apĂłs a vĂ­tima buscar assistĂȘncia.

AmauĂȘ destaca que nĂŁo sĂŁo raros os relatos de mulheres que sofreram abuso sexual dentro de suas prĂłprias casas por familiares prĂłximos, como pai, tio ou padrasto. Muitas carregam atĂ© hoje o trauma e o medo dos abusos, mas relatam dificuldades em falar sobre o assunto e denunciar, frequentemente por estarem sozinhas e vulnerĂĄveis durante o abuso.

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“A violĂȘncia sexual ainda Ă© um tabu nas comunidades indĂ­genas, o que faz com que muitas vĂ­timas nĂŁo denunciem por medo de serem mal faladas ou por receio das ameaças que sofrem”, diz ela.

Ameaças e tentativa de assassinato

Em 2020 AmauĂȘ Jacinto denunciou violĂȘncias cometidas pela liderança da comunidade em que vivia, em SĂŁo JerĂŽnimo da Serra, no norte do ParanĂĄ. Como resultado, foi ameaçada e expulsa de seu territĂłrio.

Meses depois, AmauĂȘ acolheu em sua casa um grupo de mulheres e crianças indĂ­genas vĂ­timas de violĂȘncia. Identificada como liderança das mulheres, sofreu uma emboscada seguida de tentativa de assassinato, supostamente organizada pelos agressores que havia denunciado. 

“Eu estava gestante e tive minha casa cercada por mais de 30 pessoas, eles gritavam que iriam entrar e me matar”, relembra emocionada. “A intenção era matar mesmo. Essa Ă© uma das consequĂȘncias que sofremos quando denunciamos as violĂȘncias no territĂłrio”, afirma.

Amaue passou a integrar o Programa de Proteção a VĂ­timas e Testemunhas Ameaçadas. Ela e as demais mulheres e crianças vĂ­timas de violĂȘncia perderam o acesso ao territĂłrio e precisaram migrar.

A migração de mulheres indĂ­genas para ĂĄreas urbanas, em busca de sobrevivĂȘncia, reflete nĂŁo apenas as dificuldades enfrentadas em suas Terras IndĂ­genas (TI), mas tambĂ©m a perda de vĂ­nculo com sua cultura e identidade.

“Para o indĂ­gena, perder o acesso ao territĂłrio Ă© difĂ­cil porque temos que viver em uma realidade e estrutura social totalmente diferente. Estamos expostos a uma sociedade racista, sabemos que nĂŁo teremos as mesmas oportunidades e nĂŁo vamos conseguir nos consolidar”, diz AmauĂȘ. 

HĂĄ trĂȘs anos refugiada em um territĂłrio nĂŁo indĂ­gena, AmauĂȘ cria sua filha sem acesso Ă  sua terra. “Minha perspectiva Ă© que, nesta geração, eu nĂŁo consiga voltar para uma terra indĂ­gena. Talvez minha famĂ­lia consiga, mas eu nĂŁo. A violĂȘncia Ă© muito estrutural, e cada vez que defendo mulheres, arrumo mais inimigos”, diz.

Dificuldade para denunciar


O medo, vergonha, temor de represĂĄlias familiares ou falta de conhecimento sĂŁo algumas das dificuldades em denunciar as violĂȘncias contra mulheres indĂ­genas 📾 © Esquerda DiĂĄrio

Ao longo da histĂłria do Brasil, as mulheres indĂ­genas foram sistematicamente invisibilizadas. Ainda hoje, enfrentam desafios Ășnicos em suas relaçÔes sociais e na luta contra a violĂȘncia de gĂȘnero, quando comparadas Ă s mulheres nĂŁo indĂ­genas.

“A sociedade nĂŁo se comove com as mulheres indĂ­genas, os movimentos e organizaçÔes nĂŁo se mobilizam. Parece haver um grande acordo entre estado, movimentos indĂ­genas e organizaçÔes para nĂŁo se falar ou debater sobre isso”, afirma AmauĂȘ Jacinto.

Assim como muitas mulheres em situação de violĂȘncia domĂ©stica, as mulheres indĂ­genas encontram diversas dificuldades para denunciar seus agressores. Isso se deve ao medo, vergonha, temor de represĂĄlias familiares ou Ă  falta de conhecimento sobre como realizar a denĂșncia e buscar ajuda.

“Existe toda uma estrutura machista que faz com que as mulheres sejam oprimidas, fiquem com muito medo e nĂŁo denunciem os crimes cometidos. Se uma mulher faz a denĂșncia, ela sabe que a violĂȘncia pode ser ainda maior”, diz AmauĂȘ.

As mulheres indĂ­genas tambĂ©m enfrentam desafios adicionais como o isolamento das comunidades, que limita o seu acesso Ă s informaçÔes sobre seus direitos. Muitas vezes, as delegacias e outros serviços pĂșblicos ficam distantes, e as mulheres vĂ­timas de violĂȘncia nĂŁo tĂȘm recursos financeiros ou meios para acessĂĄ-los.

Elas tambĂ©m enfrentam barreiras linguĂ­sticas, pois muitas nĂŁo falam portuguĂȘs, e os ĂłrgĂŁos estatais nĂŁo estĂŁo preparados com tradutores e intĂ©rpretes para fazer a tradução linguĂ­stica e intercultural.

AlĂ©m disso, a Associação de Mulheres IndĂ­genas Organizada em Rede (Amior) ressalta que as instituiçÔes que lidam diretamente com essas comunidades, como a Fundação Nacional dos Povos IndĂ­genas (Funai), muitas vezes hesitam em interferir nos casos de violĂȘncia, citando a autodeterminação dos povos como uma barreira, enquanto as mulheres indĂ­genas enfrentam restriçÔes em relação a seus corpos-territĂłrios, Ă s suas liberdades e ao acesso aos direitos bĂĄsicos.

“Quando procurei uma delegacia para fazer a denĂșncia, sofri racismo e eles sequer aceitavam meu relato. Queriam que eu falasse com a Funai porque era problema interno e eles nĂŁo poderiam fazer nada. Todos os ĂłrgĂŁos citavam a Funai e, mesmo quando procurei a organização, nĂŁo queriam fazer algo”, relata AmauĂȘ.

Em carta-compromisso divulgada pela Amior, a organização ressalta que “a autodeterminação dos povos, embora seja um princĂ­pio importante, nĂŁo pode servir de justificativa para violaçÔes dos direitos humanos, como a violĂȘncia contra mulheres e crianças”. 

Para a associação, as violĂȘncias domĂ©stica, intrafamiliares e/ou sexual contra mulheres e crianças nĂŁo se enquadram nestas garantias de direito Ă  autodeterminação dos povos; sĂŁo crimes que atentam contra a dignidade humana, passĂ­veis de penalidades aplicadas pelo direito criminal do estado brasileiro.

“Existem casos em que as pessoas conseguem vencer todos esses obstĂĄculos e alcançar a justiça, principalmente em crimes hediondos. Quando nĂŁo hĂĄ uma penalidade equivalente dentro do territĂłrio, a justiça brasileira age. Tivemos casos de condenação por feminicĂ­dio e estupros coletivos. Mas, para cada caso condenado, existem tantos outros que estĂŁo sendo abafados”, afirma AmauĂȘ.

AusĂȘncia de dados

A obtenção de nĂșmeros e dados sobre violĂȘncia contra mulheres indĂ­genas Ă© uma tarefa complexa, frequentemente dificultada pela ausĂȘncia de registros oficiais e pela cultura do silĂȘncio prevalente em muitas comunidades.

A falta de estatĂ­sticas precisas sobre a violĂȘncia contra a mulher, alĂ©m da desinformação sobre seus direitos legais, como a Lei Maria da Penha, representa um dos principais desafios nesses territĂłrios.

Transformar essa realidade Ă© essencial, com a implementação de medidas efetivas para proteger essas mulheres e assegurar que seus direitos sejam respeitados. É necessĂĄrio romper o ciclo de violĂȘncia, proporcionando suporte emocional e jurĂ­dico Ă s vĂ­timas e garantindo que os agressores sejam responsabilizados por seus atos.

AlĂ©m das violĂȘncias fĂ­sicas sofridas pelas mulheres indĂ­genas em seus territĂłrios, hĂĄ outras formas de violĂȘncia, como casamentos forçados, abuso sexual, doação de filhos sem consentimento da mĂŁe, despejo da propriedade e restrição de acesso a propriedades. Essas prĂĄticas ilegais, que afetam negativamente a vida das mulheres indĂ­genas, frequentemente nĂŁo sĂŁo quantificadas.

A subnotificação e a falta de enfrentamento eficaz agravam a situação, resultando em taxas crescentes de feminicídios em comunidades indígenas brasileiras, como é o caso no Paranå.

“O estado tem que fazer um levantamento sĂ©rio do que estĂĄ acontecendo nas comunidades, precisam entrar nos territĂłrios e enxergar de verdade o que estĂĄ acontecendo, para que nĂŁo haja casos subnotificados”, afirma Amaue.

ObservatĂłrio da ViolĂȘncia contra as Mulheres IndĂ­genas no ParanĂĄ


A criação do observatĂłrio representa o inĂ­cio de uma articulação da defensoria para desenvolver respostas Ă s situaçÔes de violĂȘncia de gĂȘnero 📾 © Reprodução/Instagram Amior

A Defensoria PĂșblica do Estado do ParanĂĄ (DPE-PR), atravĂ©s do NĂșcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), lançou o ObservatĂłrio da ViolĂȘncia contra as Mulheres IndĂ­genas no ParanĂĄ.

A criação do observatĂłrio representa o inĂ­cio de uma articulação permanente da defensoria para desenvolver respostas Ă s situaçÔes de violĂȘncia de gĂȘnero enfrentadas por mulheres indĂ­genas, tanto dentro quanto fora de seus territĂłrios.

“Normalmente, nĂŁo atuamos em casos individuais, mas temos recebido um nĂșmero expressivo de denĂșncias, e as mulheres indĂ­genas nos procuraram para idealizar o observatĂłrio de violĂȘncia contra as mulheres indĂ­genas”, afirma Mariana Nunes, coordenadora do Nudem.

“Buscamos garantir o protagonismo dessas mulheres, com uma intervenção que visa o apoio, respeitando suas cosmovisĂ”es e sem ignorar a violĂȘncia grave e sistemĂĄtica que enfrentam”, explica a defensora.

A carĂȘncia de dados sobre as violĂȘncias foi o impulso para a criação do observatĂłrio, que terĂĄ a função de registrar casos jĂĄ relatados informalmente, envolvendo diversos tipos de violĂȘncia: fĂ­sica, sexual, patrimonial, polĂ­tica, obstĂ©trica, simbĂłlica e psicolĂłgica. O observatĂłrio tambĂ©m responde Ă  demanda das mulheres indĂ­genas por maior representação nas instĂąncias de poder e tomada de decisĂŁo.

Uma das primeiras medidas adotadas pelo Nudem foi a criação de um formulĂĄrio para receber as denĂșncias formalmente. DisponĂ­vel no site da Defensoria PĂșblica, o formulĂĄrio coleta dados sobre violĂȘncias cometidas contra mulheres indĂ­genas no ParanĂĄ, com o objetivo de subsidiar a elaboração de polĂ­ticas pĂșblicas especĂ­ficas para a prevenção e combate Ă  violĂȘncia de gĂȘnero contra essas mulheres. SerĂĄ possĂ­vel registrar a denĂșncia tanto como vĂ­tima quanto como testemunha.

|📾 © Fabio Rodrigues Pozzebom/AgĂȘncia Brasil

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