|đđč NĂșmero de feminicĂdios indĂgenas cresce alarmantes 500% em menos de uma dĂ©cada
Por Mayala Fernandes, do Brasil de Fato
Os casos de feminicĂdio de mulheres e adolescentes indĂgenas no Brasil aumentaram alarmantes 500% entre 2003 e 2022. As vĂtimas sĂŁo predominantemente jovens, solteiras e com menor escolaridade.
As informaçÔes sĂŁo do RelatĂłrio TĂ©cnico sobre HomicĂdios contra Mulheres e Adolescentes IndĂgenas no Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal do ParanĂĄ (UFPR) em parceria com o MinistĂ©rio dos Povos IndĂgenas.
No total, foram registrados 394 homicĂdios de mulheres e adolescentes indĂgenas. A regiĂŁo Centro-Oeste teve o maior nĂșmero de mortes, com 157 casos e uma taxa de 9,7 por 100 mil. Mato Grosso do Sul lidera com 149 homicĂdios.
âA violĂȘncia contra as mulheres indĂgenas dentro do nosso territĂłrio nĂŁo Ă© cultural, o machismo e o patriarcado penetraram nossas estruturas sociais e se fortaleceram com a colonizaçãoâ, explica AmauĂȘ Jacinto, indĂgena guarani Nhandewa, diretora executiva da Associação de Mulheres IndĂgenas Organizadas em Rede (Amior).
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âAlĂ©m disso, nunca houve um trabalho eficaz de prevenção e combate a essas açÔes. A negligĂȘncia do estado criou um campo fĂ©rtil para essas violĂȘncias. As mulheres indĂgenas estĂŁo sozinhasâ, afirma.
Embora a violĂȘncia de gĂȘnero seja amplamente discutida na sociedade, pouco se fala sobre as agressĂ”es vivenciadas pelas mulheres indĂgenas, tanto dentro quanto fora das aldeias. O relatĂłrio revela que estas mulheres estĂŁo expostas a diversas formas de violĂȘncia, incluindo fĂsica, psicolĂłgica, ameaças e humilhaçÔes.
AlĂ©m disso, 28,7% dos homicĂdios ocorreram no domicĂlio, indicando desafios relacionados Ă s dinĂąmicas familiares. Outros 18,8% dos casos ocorreram no hospital, indicando que uma parcela significativa dos Ăłbitos ocorre apĂłs a vĂtima buscar assistĂȘncia.
AmauĂȘ destaca que nĂŁo sĂŁo raros os relatos de mulheres que sofreram abuso sexual dentro de suas prĂłprias casas por familiares prĂłximos, como pai, tio ou padrasto. Muitas carregam atĂ© hoje o trauma e o medo dos abusos, mas relatam dificuldades em falar sobre o assunto e denunciar, frequentemente por estarem sozinhas e vulnerĂĄveis durante o abuso.
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âA violĂȘncia sexual ainda Ă© um tabu nas comunidades indĂgenas, o que faz com que muitas vĂtimas nĂŁo denunciem por medo de serem mal faladas ou por receio das ameaças que sofremâ, diz ela.
Ameaças e tentativa de assassinato
Em 2020 AmauĂȘ Jacinto denunciou violĂȘncias cometidas pela liderança da comunidade em que vivia, em SĂŁo JerĂŽnimo da Serra, no norte do ParanĂĄ. Como resultado, foi ameaçada e expulsa de seu territĂłrio.
Meses depois, AmauĂȘ acolheu em sua casa um grupo de mulheres e crianças indĂgenas vĂtimas de violĂȘncia. Identificada como liderança das mulheres, sofreu uma emboscada seguida de tentativa de assassinato, supostamente organizada pelos agressores que havia denunciado.
âEu estava gestante e tive minha casa cercada por mais de 30 pessoas, eles gritavam que iriam entrar e me matarâ, relembra emocionada. âA intenção era matar mesmo. Essa Ă© uma das consequĂȘncias que sofremos quando denunciamos as violĂȘncias no territĂłrioâ, afirma.
Amaue passou a integrar o Programa de Proteção a VĂtimas e Testemunhas Ameaçadas. Ela e as demais mulheres e crianças vĂtimas de violĂȘncia perderam o acesso ao territĂłrio e precisaram migrar.
A migração de mulheres indĂgenas para ĂĄreas urbanas, em busca de sobrevivĂȘncia, reflete nĂŁo apenas as dificuldades enfrentadas em suas Terras IndĂgenas (TI), mas tambĂ©m a perda de vĂnculo com sua cultura e identidade.
âPara o indĂgena, perder o acesso ao territĂłrio Ă© difĂcil porque temos que viver em uma realidade e estrutura social totalmente diferente. Estamos expostos a uma sociedade racista, sabemos que nĂŁo teremos as mesmas oportunidades e nĂŁo vamos conseguir nos consolidarâ, diz AmauĂȘ.
HĂĄ trĂȘs anos refugiada em um territĂłrio nĂŁo indĂgena, AmauĂȘ cria sua filha sem acesso Ă sua terra. âMinha perspectiva Ă© que, nesta geração, eu nĂŁo consiga voltar para uma terra indĂgena. Talvez minha famĂlia consiga, mas eu nĂŁo. A violĂȘncia Ă© muito estrutural, e cada vez que defendo mulheres, arrumo mais inimigosâ, diz.
Dificuldade para denunciar
O medo, vergonha, temor de represĂĄlias familiares ou falta de conhecimento sĂŁo algumas das dificuldades em denunciar as violĂȘncias contra mulheres indĂgenas đž © Esquerda DiĂĄrio
Ao longo da histĂłria do Brasil, as mulheres indĂgenas foram sistematicamente invisibilizadas. Ainda hoje, enfrentam desafios Ășnicos em suas relaçÔes sociais e na luta contra a violĂȘncia de gĂȘnero, quando comparadas Ă s mulheres nĂŁo indĂgenas.
âA sociedade nĂŁo se comove com as mulheres indĂgenas, os movimentos e organizaçÔes nĂŁo se mobilizam. Parece haver um grande acordo entre estado, movimentos indĂgenas e organizaçÔes para nĂŁo se falar ou debater sobre issoâ, afirma AmauĂȘ Jacinto.
Assim como muitas mulheres em situação de violĂȘncia domĂ©stica, as mulheres indĂgenas encontram diversas dificuldades para denunciar seus agressores. Isso se deve ao medo, vergonha, temor de represĂĄlias familiares ou Ă falta de conhecimento sobre como realizar a denĂșncia e buscar ajuda.
âExiste toda uma estrutura machista que faz com que as mulheres sejam oprimidas, fiquem com muito medo e nĂŁo denunciem os crimes cometidos. Se uma mulher faz a denĂșncia, ela sabe que a violĂȘncia pode ser ainda maiorâ, diz AmauĂȘ.
As mulheres indĂgenas tambĂ©m enfrentam desafios adicionais como o isolamento das comunidades, que limita o seu acesso Ă s informaçÔes sobre seus direitos. Muitas vezes, as delegacias e outros serviços pĂșblicos ficam distantes, e as mulheres vĂtimas de violĂȘncia nĂŁo tĂȘm recursos financeiros ou meios para acessĂĄ-los.
Elas tambĂ©m enfrentam barreiras linguĂsticas, pois muitas nĂŁo falam portuguĂȘs, e os ĂłrgĂŁos estatais nĂŁo estĂŁo preparados com tradutores e intĂ©rpretes para fazer a tradução linguĂstica e intercultural.
AlĂ©m disso, a Associação de Mulheres IndĂgenas Organizada em Rede (Amior) ressalta que as instituiçÔes que lidam diretamente com essas comunidades, como a Fundação Nacional dos Povos IndĂgenas (Funai), muitas vezes hesitam em interferir nos casos de violĂȘncia, citando a autodeterminação dos povos como uma barreira, enquanto as mulheres indĂgenas enfrentam restriçÔes em relação a seus corpos-territĂłrios, Ă s suas liberdades e ao acesso aos direitos bĂĄsicos.
âQuando procurei uma delegacia para fazer a denĂșncia, sofri racismo e eles sequer aceitavam meu relato. Queriam que eu falasse com a Funai porque era problema interno e eles nĂŁo poderiam fazer nada. Todos os ĂłrgĂŁos citavam a Funai e, mesmo quando procurei a organização, nĂŁo queriam fazer algoâ, relata AmauĂȘ.
Em carta-compromisso divulgada pela Amior, a organização ressalta que âa autodeterminação dos povos, embora seja um princĂpio importante, nĂŁo pode servir de justificativa para violaçÔes dos direitos humanos, como a violĂȘncia contra mulheres e criançasâ.Â
Para a associação, as violĂȘncias domĂ©stica, intrafamiliares e/ou sexual contra mulheres e crianças nĂŁo se enquadram nestas garantias de direito Ă autodeterminação dos povos; sĂŁo crimes que atentam contra a dignidade humana, passĂveis de penalidades aplicadas pelo direito criminal do estado brasileiro.
âExistem casos em que as pessoas conseguem vencer todos esses obstĂĄculos e alcançar a justiça, principalmente em crimes hediondos. Quando nĂŁo hĂĄ uma penalidade equivalente dentro do territĂłrio, a justiça brasileira age. Tivemos casos de condenação por feminicĂdio e estupros coletivos. Mas, para cada caso condenado, existem tantos outros que estĂŁo sendo abafadosâ, afirma AmauĂȘ.
AusĂȘncia de dados
A obtenção de nĂșmeros e dados sobre violĂȘncia contra mulheres indĂgenas Ă© uma tarefa complexa, frequentemente dificultada pela ausĂȘncia de registros oficiais e pela cultura do silĂȘncio prevalente em muitas comunidades.
A falta de estatĂsticas precisas sobre a violĂȘncia contra a mulher, alĂ©m da desinformação sobre seus direitos legais, como a Lei Maria da Penha, representa um dos principais desafios nesses territĂłrios.
Transformar essa realidade Ă© essencial, com a implementação de medidas efetivas para proteger essas mulheres e assegurar que seus direitos sejam respeitados. Ă necessĂĄrio romper o ciclo de violĂȘncia, proporcionando suporte emocional e jurĂdico Ă s vĂtimas e garantindo que os agressores sejam responsabilizados por seus atos.
AlĂ©m das violĂȘncias fĂsicas sofridas pelas mulheres indĂgenas em seus territĂłrios, hĂĄ outras formas de violĂȘncia, como casamentos forçados, abuso sexual, doação de filhos sem consentimento da mĂŁe, despejo da propriedade e restrição de acesso a propriedades. Essas prĂĄticas ilegais, que afetam negativamente a vida das mulheres indĂgenas, frequentemente nĂŁo sĂŁo quantificadas.
A subnotificação e a falta de enfrentamento eficaz agravam a situação, resultando em taxas crescentes de feminicĂdios em comunidades indĂgenas brasileiras, como Ă© o caso no ParanĂĄ.
âO estado tem que fazer um levantamento sĂ©rio do que estĂĄ acontecendo nas comunidades, precisam entrar nos territĂłrios e enxergar de verdade o que estĂĄ acontecendo, para que nĂŁo haja casos subnotificadosâ, afirma Amaue.
ObservatĂłrio da ViolĂȘncia contra as Mulheres IndĂgenas no ParanĂĄ
A criação do observatĂłrio representa o inĂcio de uma articulação da defensoria para desenvolver respostas Ă s situaçÔes de violĂȘncia de gĂȘnero đž © Reprodução/Instagram Amior
A Defensoria PĂșblica do Estado do ParanĂĄ (DPE-PR), atravĂ©s do NĂșcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), lançou o ObservatĂłrio da ViolĂȘncia contra as Mulheres IndĂgenas no ParanĂĄ.
A criação do observatĂłrio representa o inĂcio de uma articulação permanente da defensoria para desenvolver respostas Ă s situaçÔes de violĂȘncia de gĂȘnero enfrentadas por mulheres indĂgenas, tanto dentro quanto fora de seus territĂłrios.
âNormalmente, nĂŁo atuamos em casos individuais, mas temos recebido um nĂșmero expressivo de denĂșncias, e as mulheres indĂgenas nos procuraram para idealizar o observatĂłrio de violĂȘncia contra as mulheres indĂgenasâ, afirma Mariana Nunes, coordenadora do Nudem.
âBuscamos garantir o protagonismo dessas mulheres, com uma intervenção que visa o apoio, respeitando suas cosmovisĂ”es e sem ignorar a violĂȘncia grave e sistemĂĄtica que enfrentamâ, explica a defensora.
A carĂȘncia de dados sobre as violĂȘncias foi o impulso para a criação do observatĂłrio, que terĂĄ a função de registrar casos jĂĄ relatados informalmente, envolvendo diversos tipos de violĂȘncia: fĂsica, sexual, patrimonial, polĂtica, obstĂ©trica, simbĂłlica e psicolĂłgica. O observatĂłrio tambĂ©m responde Ă demanda das mulheres indĂgenas por maior representação nas instĂąncias de poder e tomada de decisĂŁo.
Uma das primeiras medidas adotadas pelo Nudem foi a criação de um formulĂĄrio para receber as denĂșncias formalmente. DisponĂvel no site da Defensoria PĂșblica, o formulĂĄrio coleta dados sobre violĂȘncias cometidas contra mulheres indĂgenas no ParanĂĄ, com o objetivo de subsidiar a elaboração de polĂticas pĂșblicas especĂficas para a prevenção e combate Ă violĂȘncia de gĂȘnero contra essas mulheres. SerĂĄ possĂvel registrar a denĂșncia tanto como vĂtima quanto como testemunha.
|đž © Fabio Rodrigues Pozzebom/AgĂȘncia Brasil
RĂĄdio Centro Cajazeiras