|📃💊 Zolpidem: agora com uso restrito, remédio pode causar grave dependência
Por Luiza Caires, do Jornal da USP
Pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) descreve um conjunto de casos de pacientes que desenvolveram grave dependência do Zolpidem, medicamento prescrito para insônia. Admitidas no Promud, o Programa de Tratamento para Mulheres Dependentes de Drogas do Hospital das Clínicas (HC), essas mulheres apresentavam tolerância, quando a mesma quantidade não faz mais tanto efeito e são tomadas doses cada vez maiores; fissura, que é o desejo intenso de consumir a substância; e sintomas de abstinência, quando havia a tentativa de retirada – algumas vezes com consequências graves, como convulsões.
A dependência e os sintomas de intoxicação, como episódios dissociativos (um estado “crepuscular”, comparável ao sonambulismo, em que não se está totalmente acordado nem dormindo), perda de memória, redução da atenção e quedas podem ser atribuídos ao uso inadequado, tanto em relação à dosagem, quanto ao tempo estendido de uso e também à finalidade: consumido como droga recreativa ou para alívio da angústia, por exemplo.
A série de casos relatados pelos pesquisadores se soma a uma literatura científica ainda escassa sobre a dependência de Zolpidem. “Inicialmente, a ideia era fazer um artigo com a revisão sistemática da literatura sobre o assunto, mas percebemos que ainda não havia sequer dados suficientes para serem revisados, e achamos que poderíamos contribuir mais com o relato de casos que recebemos no Promud”, explica Pedro Bacchi, coordenador de pesquisas do programa e um dos autores do trabalho. “Pensamos: ‘bom, a gente tem cinco pacientes e é uma amostra feminina que traz um recorte interessante, então vamos somar um pouco para essa literatura’”.
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A história
A década de 1980 viu nascer, com o lançamento dos medicamentos hipnóticos como o Zolpidem, a promessa de tratamento para insônia que não causaria dependência. Até então, o recurso farmacológico mais usado para este problema eram os benzodiazepínicos, que funcionavam, mas ao custo de efeitos colaterais, sendo a dependência o mais grave. “Eles também não tratam problemas como ansiedade – são úteis em curto prazo, como no início do tratamento ou em episódios de pânico, por exemplo, e são controlados com mais rigor, exigindo receita azul”, esclarece Pedro Bacchi.
O diferencial das drogas Z, que também incluíam a Zopiclona e o Zaleplon, seria a ação mais focada na indução do sono – em tese com pouco risco de causar dependência. Isso porque, diz o psiquiatra, era sabido que o Zolpidem atuava numa subunidade específica de um receptor dos neurônios chamado gaba A – relacionado à inibição neuronal – de forma a modular, “calibrar” sua ação. Assim, traria os efeitos sedativos mas sem a inibição, o “desligamento” de outras funções cerebrais, como faz o álcool, por exemplo, que pode dar uma sensação de relaxamento, torpor e fazer a pessoa se comportar com menos freios sociais.
Por seus efeitos, era assim, modulando o receptor gaba, que as drogas Z demonstraram agir nos estudos clínicos que permitiram sua aprovação. O problema é que elas foram testadas somente para uso em curto prazo e baixa dosagem. Quando no mundo real, nas mãos dos pacientes, doses maiores começaram a ser tomadas . O que pode ser explicado, por um lado, porque em médio e longo prazo eles desenvolviam tolerância – a dose inicial do medicamento não propiciava o mesmo efeito –, o que por si só já é um sinal de alerta para risco de dependência. Por outro, alguns pacientes foram notando efeitos diferentes quando tomavam o remédio em dosagens maiores e contextos fora da “hora de dormir”. Nesses casos, o Zolpidem agia de outra forma no gaba e em outros receptores do sistema nervoso central, promovendo euforia e bem-estar. E assim a utilização saía do padrão de prescrição. “As pessoas fazem usos que nem sempre se pode prever e só conhecemos as consequências depois”, diz Pedro Bacchi.
Quando os relatos de abuso e de graves sintomas nas tentativas de retirada se intensificaram, o remédio já era amplamente receitado – com um aumento de 30 vezes entre 1993 e 2007 nos EUA. Muitas vezes, eram prescritos por médicos de especialidades fora da psiquiatria, mas também eram tomados em esquema de automedicação. No Brasil, ainda não era exigida receita azul, o que passou a ser feito em agosto de 2024, criando mais restrições à comercialização.
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Dependência
No artigo, são relatados o quadro, a história e a evolução de cinco mulheres atendidas pelo Promud, tendo entre 25 e 45 anos. O tempo total de uso variou de dois anos e meio a 17 anos; e a dose máxima ingerida em um dia atingiu de 60 a 800 mg. Parte delas apresentava comorbidades, isto é, outras condições psiquiátricas, como depressão, TDAH e transtornos alimentares. “Muitas vezes percebemos que, tratando essas outras condições, a dependência pode se resolver com mais facilidade”, diz Pedro Bacchi, acrescentando que algumas das pacientes tinham histórico de ter sofrido violência doméstica ou outros abusos.
“A literatura mostra que acima de cerca de 20 miligramas de Zolpidem, algumas pessoas já têm o efeito de euforia, então muitas usam durante o dia para isso. Mas a maior parte das pacientes com quem tivemos contato começou de fato a usar durante a noite, para induzir ao sono. Só que com o tempo, pelo mecanismo de tolerância, foram precisando de doses maiores e daí passaram a usar durante o dia também, buscando um efeito de alívio da sensação de angústia”, explica Talita di Santi, psiquiatra do Promud e também autora do artigo. Ela destaca que esse é um mecanismo da própria dependência. “Tem a ver com fissura, tem a ver com o tempo de ação do fármaco. É uma coisa que a pessoa não controla, que tem relação com os efeitos químicos da droga mesmo.”
A retirada, enfatiza a médica, precisa ser gradativa, caso contrário há risco até mesmo de vida, a depender das condições do paciente. “No nosso estudo, duas das pacientes tiveram convulsões após uma retirada abrupta, que não é recomendada.”
Ocorre ainda ansiedade, grande desconforto e o efeito rebote, neste caso causando insônia por vários dias.
A literatura científica, ainda que pouco numerosa, também traz relatos de problemas cardíacos. “Precisamos prestar atenção principalmente nesses riscos clínicos: uma pessoa com convulsão, taquicardia e alterações de pressão precisa ir para um pronto-socorro”, adverte a psiquiatra.
Os efeitos adversos também podem virar um problema sério, com a pessoa submetendo a si mesma e outros a situações de risco. “Há pessoas com dependência que tomam dezenas de comprimidos e vão dirigir ou trabalhar em funções em que podem colocar vidas em risco”, pondera Pedro Bacchi.
Talita di Santi lembra que existem outras opções para a insônia. Uma delas é a terapia cognitiva comportamental focada no sono. “É principalmente o que a gente faz, orientando sobre as medidas de higiene do sono. E se ainda precisarmos, há outros medicamentos que não causam dependência. São medicações mais seguras, mas tudo isso é individualizado, pois cada pessoa reage de uma forma diferente.”
A terapia em grupo se mostra fundamental no tratamento da dependência. No Hospital das Clínicas, percebeu-se algo que já era mais ou menos conhecido para outras condições: as mulheres evoluíam melhor se elas estivessem em um ambiente só delas para tratar a dependência de álcool e drogas.
“As mulheres precisam ser cuidadas em centros de tratamento específicos para elas, principalmente em álcool e drogas, em que o estigma é levado ao limite. Pense em uma mãe, uma avó, uma filha usando drogas, o que aquela mulher já sofre de estigma na sociedade triplica. E se no ambulatório de homens sempre tem uma mulher acompanhando, no de mulheres, quase nunca vemos homens ao lado delas”, diz Pedro Bacchi. “Até por isso, lá no HC temos tentado dar visibilidade ao serviço que prestamos, por meio de um esforço de pesquisa no Promud.”
O tratamento da dependência passa, além da terapia de grupo, por uma abordagem multidisciplinar. Os medicamentos não são a principal ferramenta no tratamento da dependência, “embora medicações para tratar comorbidades, como antidepressivos, ajudem no quadro como um todo”, pondera o pesquisador.
Os autores do artigo veem de forma positiva a determinação da Anvisa de que a comercialização do Zolpidem tenha um maior controle. “Inclusive, nos meus atendimentos, eu já vejo que as coisas começaram a mudar. Antes, o Zolpidem poderia ser prescrito por qualquer médico, sem o cadastro governamental para uso da receita azul, que não pode ser emitida em consultas on-line. Então, muitos médicos de outras áreas, que não têm esse registro, e antes prescreviam o medicamento, optam por encaminhar o paciente para o psiquiatra ou escolher outra medicação.” Para ela, além da limitação prática, há também uma questão simbólica, na imagem que os pacientes têm daquela droga, agora que ela tem maior controle pela legislação.
Aluno da graduação que liderou a escrita do artigo, Guilherme Leal diz que a população precisa ser conscientizada de que este é um medicamento que pode trazer graves consequências. “Também é importante evitar a prática de tomar comprimidos obtidos de terceiros ou buscar o fármaco como forma de automedicação para a insônia.”
Promud
O Promud foi fundado em 1996, como um programa de tratamento para o atendimento exclusivo de mulheres com diagnóstico de Transtorno de Dependência de Substâncias Psicoativas. O ambulatório compõe um dos serviços especializados oferecidos pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, funcionando em seu Complexo Central, em São Paulo. O Promud é um serviço multidisciplinar, com uma equipe composta de psiquiatras, residentes de Psiquiatria, psicólogos, estudantes de Psicologia, nutricionistas e advogada.
Inscrições e informações podem ser obtidas no site e pelo telefone (11) 3082-1876, de segunda a sexta-feira, das 9 às 12 horas. São aceitas somente pacientes residentes na Grande São Paulo, porque o atendimento é presencial.
Mais informações:
www.mulherdependentequimica.com.br
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