O futebol assume dimensĂ”es que vĂŁo alĂ©m da esportiva, estando associado atĂ© mesmo Ă  ideia do que Ă© ser brasileiro 📾 © Fernando FrazĂŁo/AgĂȘncia Brasil

Torcidas organizadas são ambientes que favorecem os extremos das emoçÔes. Desde o amor mais incondicional, até a maior das brutalidades, como foi o caso das cenas de horror envolvendo torcidas organizadas do Sport e do Santa Cruz, no Recife.

SociĂłlogos e psicĂłlogos consultados pela AgĂȘncia Brasil afirmam: situaçÔes como esta sĂŁo apenas a ponta do iceberg, em uma sociedade onde a violĂȘncia se apresenta de forma quase onipresente. Na avaliação deles, muitas pessoas acabam exagerando, ao levar tĂŁo a sĂ©rio este esporte que, segundo o jargĂŁo popular, Ă© apontado como “a coisa mais importante entre as menos importantes”.

Pesquisador do NĂșcleo de Estudos Sobre ViolĂȘncia e Segurança da Universidade de BrasĂ­lia (NEVIS/UnB), EdergĂȘnio Vieira diz que as pessoas precisam aprender a brincar nĂŁo sĂł com as vitĂłrias, mas tambĂ©m com as derrotas de seus times.

“Vale zoar, claro que respeitosamente, o amigo. Mas vale tambĂ©m brincar com as derrotas, como fazem, por exemplo, os torcedores do Ibis”, sugere o sociĂłlogo, referindo-se ao time pernambucano que Ă© motivo de orgulho para seus torcedores pela fama de pior time do mundo.

Vieira explica que, para o prĂłprio bem do futebol, ele precisa ser visto como algo que proporciona lazer e diversĂŁo. “NĂŁo pode servir de pretexto para extremos de violĂȘncia”, acrescentou o pesquisador que se apresenta como “corintiano, maloqueiro e sofredor”.

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DimensÔes

Segundo Vieira, em um país como o Brasil, o futebol assume dimensÔes que vão além da esportiva, estando associado até mesmo à ideia do que é ser brasileiro.

“O futebol nos explica, enquanto brasileiros, para o mundo. Explica tambĂ©m nossas paixĂ”es, impulsos e motivaçÔes diante do cotidiano. Isso estĂĄ presente atĂ© mesmo nas metĂĄforas usadas em todas as dimensĂ”es da vida”, argumenta.

De acordo com o sociĂłlogo, o futebol carrega consigo muitas das expressĂ”es que permeiam a vida dos brasileiros. “Inclusive a violĂȘncia contida em nosso dia a dia. Nesse caso, potencializado, devido aos aspectos de catarse coletiva proporcionada por ele”, ressalta o autor de estudos sobre as performances da violĂȘncia na sociedade.

Torcer Ă©…

Ele cita alguns historiadores que publicaram trabalhos sobre o medo no futebol brasileiro e sobre o surgimento das torcidas. Vieira explica que, apĂłs chegar ao Brasil, o futebol era tido como um esporte de elite.

Cruzeiro - torcida - MineirĂŁo - 5 de novembro de 2023 - confronto contra o Inter pelo Brasileiro
Torcedores levam  fanatismo e paixão aos estådios
📾 © Alessandra Torres/Cruzeiro

“As pessoas iam aos estĂĄdios segurando lenços [para secar o suor] e observar os jovens da elite praticando o novo ‘esporte bretĂŁo’. Durante a partida, em meio Ă s angĂșstias, elas seguravam o lenço e o torciam. Foi daĂ­ que surgiu a palavra torcedor”, disse ele ao relatar as montanhas-russas de emoçÔes associadas ao futebol.

Com o tempo, o acesso ao futebol foi ficando barato e acessĂ­vel, para uma população que nĂŁo tinha muitas outras formas de diversĂŁo. “O pĂșblico, entĂŁo, passou a ser, em geral, de jovens moradores de bairros com alta vulnerabilidade social. E eles passaram a encontram, na torcida, um lugar de pertencimento”, acrescentou.

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Esse viver em grupo ganhou entĂŁo proporçÔes ainda maiores por se tratar de um ambiente de catarse coletiva semelhante ao que se observa, por exemplo, em algumas igrejas. “Torcidas e fiĂ©is vivem seus momentos de celebração e culto. Cada um com seu manto sagrado”, relata o sociĂłlogo.

PsicĂłlogo e diretor de torcida organizada

Especialista em psicologia clĂ­nica e ex-diretor da torcida organizada Rubra, do time goiano Anapolina, Pedro Henrique Borges passou por experiĂȘncias que possibilitaram, a ele, um olhar privilegiado tanto para o interior dessas torcidas, como para o Ă­ntimo de seus torcedores.

“As torcidas organizadas sĂŁo movimentos de massa. Sigmound Freud [o pai da psicanĂĄlise] falou [sobre situaçÔes como esta] em seus textos sobre psicologia das massas; sobre o sentimento de pertencimento das pessoas ao serem aceitas entre seus pares”, disse o psicĂłlogo.

Brasília (DF) 05/02/2025 - Especialista em psicologia clínica e ex-diretor de torcida organizada Rubra, do time goiano Anapolina, Pedro Henrique Borges.
Foto: Pedro Henrique Borges/Arquivo pessoal
Especialista em psicologia clĂ­nica e ex-diretor de torcida organizada Rubra Pedro Henrique, do time goiano Anapolina 📾 © Pedro Henrique Borges/Arquivo pessoal

Ele explica que, segundo essa linha da psicanĂĄlise, a massa nĂŁo precisa de verdades e nem de concordar com verdades, mas de um lĂ­der que dite ideias e discursos. “NĂŁo se concorda com a ideia, mas com o lĂ­der, atĂ© pela sensação de pertencimento. E, para se sentir pertencente, ele acaba fazendo coisas que, talvez fora do grupo, nĂŁo faria”.

ViolĂȘncia

Essa visĂŁo mais abrangente, enquanto psicĂłlogo e integrante de torcida organizada, possibilitou a Borges acompanhar de perto todo o processo pelo qual alguns torcedores passaram, desde os momentos iniciais de acolhimento pelo grupo atĂ© a participação em atos de extrema violĂȘncia praticada supostamente como prova de amor ao clube.

Ele explica que, geralmente, o torcedor Ă© acolhido e aceito pela organizada. “Ali, ele pode ingressar mesmo tendo sido expulso ou rejeitado de outros lugares. Nesse ambiente, acaba sendo muito comum encontrar pessoas extremamente violentas e problemĂĄticas”, disse ele ao citar estudos indicando que a incidĂȘncia de pessoas com perfil psicopĂĄtico varia entre 4% e 6%.

“Pessoas com perfil de psicopatias costumam aproveitar grupos como torcidas organizadas para exercer toda sua perversidade”, acrescenta.

Machismo e afeto

Somado a isso, Borges lembra que, em uma sociedade machista que nĂŁo permite ao homem manifestar afeto, as torcidas organizadas acabam sendo, para muitos, a Ășnica forma onde expressar afeto Ă© algo permitido, o que amplia a relação passional com o clube e com os demais integrantes da torcida.

“Ali, eles podem expressar os afetos que, em outros espaços, sĂŁo negados ao homem. Na hora do gol, ele pode abraçar e beijar o colega; pode expressar amor ao clube. Pode atĂ© mesmo chorar, sem ter sua masculinidade questionada. Em outros ambientes, isso o inferiorizaria em relação aos demais”, explica.

EdergĂȘnio Vieira lembra que, desde criança, o futebol representa sociabilidade para os homens, exigindo deles comportamentos mĂĄsculos, atitudes fortes. “É aquela velha histĂłria: ‘futebol Ă© coisa para homem’. Ouvimos isso a todo momento, mesmo com as mulheres conquistando seus espaços, seja na torcida ou em campo”, pontuou.

Essa violĂȘncia impregnada no homem acaba sendo cultuada pela sociedade, tendo como reflexos o menosprezo e a desvalorização do outro. “O futebol nĂŁo estĂĄ Ă  parte disso, e evidencia a dificuldade de se ver as qualidades ou admirar o time adversĂĄrio. Veja bem: valorizar o adversĂĄrio seria tambĂ©m uma forma de valorizar tanto as vitĂłrias como as derrotas diante dele”, complementa.

“AlĂ©m disso, pessoas que se sentem fracassadas podem ter, nas vitĂłrias de seu time, motivos para se sentirem felizes. Elas se realizam com o futebol. Quando dĂĄ certo, tudo bem. Mas quando dĂĄ errado, elas encontram qualquer motivo para extravasar a frustração com o time”, acrescentou.

Comportamento fascista

Para Borges, a violĂȘncia ocorrida na vĂ©spera da partida entre Sport e Santa Cruz foi um caso “evidente e flagrante de psicopatia que rompe todo e qualquer pacto civilizatĂłrio”. “Vemos ali algo muito parecido com os movimentos nazistas e fascistas, no sentido de animalizar e aniquilar o outro, considerado diferente”.

O psicĂłlogo diz ver “predominĂąncia clara” de pessoas de perfil conservador nessas torcidas, mas que hĂĄ, tambĂ©m, torcidas que apesar de adotarem discursos progressistas, acabam se comportando de forma preconceituosa e agressiva, quando diante do efeito manada.

“É importante deixar claro que não há ideologia no torcer, e que brigar e confrontar estão relacionados a uma suposta honra do indivíduo ao grupo que o acolheu”, disse.

Percepção semelhante tem o sociĂłlogo EdergĂȘnio Vieira. “É estranho vermos torcidas que se dizem progressistas, inclusive adotando discursos antifascistas, serem flagradas praticando atos enquadrados exatamente no campo do fascismo. O mesmo com relação Ă  homofobia. O bom pensamento surge, mas o indivĂ­duo acaba perdido em meio Ă  multidĂŁo, porque nĂŁo hĂĄ controle sobre ela”.

Protegido pelas massas

BrasĂ­lia (DF) 05/02/2025 - EdergĂȘnio Vieira, pesquisador do NĂșcleo de Estudos Sobre ViolĂȘncia e Segurança da Universidade de BrasĂ­lia (NEVIS/UnB), escritor e doutorando em Sociologia (PPGSOL-UNB).
Foto: Carlos Costa/Divulgação
EdergĂȘnio Vieira, pesquisador do NĂșcleo de Estudos Sobre ViolĂȘncia e Segurança da Universidade de BrasĂ­lia (NEVIS/UnB)📾 © Carlos Costa/Divulgação

Vieira explica que, em meio a esse “efeito manada”, o indivíduo tem a sensação de estar protegido pelas massas. “Ele, que muitas vezes se sente fraco e inofensivo individualmente, quando cercado pela multidão tira de si essa perspectiva e se sente integrante de algo maior. Em muitos casos, da marginalidade”.

Associado a isso, acrescenta, tem tambĂ©m um processo de negação do outro. “Isso Ă© muito presente nas torcidas organizadas, inclusive em seus cĂąnticos que, muitas vezes, chegam a celebrar a morte de um adversĂĄrio. Em vĂĄrias situaçÔes as torcidas organizadas relembram pessoas assassinadas por torcedores”, complementou o sociĂłlogo.

Vieira lembra que, em alguns casos, é notória a relação próxima entre integrantes da torcida organizada e facçÔes criminosas, mas que seria um erro generalizar esse problema, criminalizando as torcidas organizadas como um todo.

“Essas facçÔes chegam a interferir no processo de organização de algumas torcidas, inclusive visando venda de entorpecentes e receptação de mercadorias roubadas”, disse.

SoluçÔes

De acordo com os especialistas consultados pela AgĂȘncia Brasil, algumas medidas podem amenizar a violĂȘncia praticada entre torcidas organizadas.

Para Vieira, uma das coisas mais frustrantes para aqueles que amam o futebol sĂŁo as partidas jogadas com estĂĄdios vazios ou com torcida Ășnica. “Essa Ă© uma medida que faz o futebol perder o que tem de bonito e espetacular”, diz ele ao se referir a uma das medidas punitivas mais adotadas contra torcidas violentas.

Uma solução, segundo o sociĂłlogo, seria a criação de um cadastro nacional de torcedores, algo que pode ser ajudado atĂ© mesmo pelos ingressos que exigem reconhecimento facial, na hora da entrada no estĂĄdio. “Tecnologias como esta podem ajudar a endurecer a punição contra os maus torcedores, inclusive banindo-os das torcidas, poupando os demais”, disse.

Segundo Borges, a exclusĂŁo de torcidas nĂŁo resolveria, a longo prazo, o problema da violĂȘncia. “Isso jĂĄ foi tentado vĂĄrias vezes e nunca deu certo”, disse ao afirmar que pessoas nĂŁo melhoram quando isoladas, seja de um estĂĄdio, seja da sociedade.

“O que precisa Ă© um processo educativo que desenvolva, nas pessoas, senso crĂ­tico. SĂŁo necessĂĄrias, portanto, polĂ­ticas voltadas a esses sujeitos mais problemĂĄticos, atĂ© porque eles continuarĂŁo existindo fora do estĂĄdios”.

PolĂ­cias

Vieira chama atenção para o papel das polĂ­cias, que nĂŁo precisam ser necessariamente violentas. “Um elemento fundamental Ă© a atuação de batalhĂ”es especiais de policiais, inclusive para se comunicarem de forma mais direta com as torcidas organizadas”.

Rio de Janeiro (RJ) 23/10/2024 - Torcedores do time Peñarol, do Uruguai, envolvidos em confusĂŁo no Recreio dos Bandeirantes, sĂŁo tradizos Ă  Cidade da PolĂ­cia Civil. Foto: Fernando FrazĂŁo/AgĂȘncia Brasil
PolĂ­cia intervĂ©m para evitar conflitos e prisĂ”es em estĂĄdios 📾 © Fernando FrazĂŁo/AgĂȘncia Brasil

“Isso possibilita a execução de plano de prevenção em conjunto com chefes das organizadas. VĂĄrias experiĂȘncias jĂĄ mostraram que isso dĂĄ certo”, acrescentou.

É o que o psicĂłlogo Borges fazia quando era diretor de torcida organizada. “Sempre pensĂĄvamos juntos [com a polĂ­cia] formas de ajudar os torcedores a se conciĂȘntizarem sobre os perigos desse efeito manada, quando a multidĂŁo perde o controle e parte para açÔes violentas”, disse.

Vieira acrescenta que as polĂ­cias deveriam dar atenção especial aos grandes eventos esportivos. “Muitas brigas sĂŁo marcadas via redes sociais. Elas poderiam ter sido evitadas, caso houvesse um trabalho de inteligĂȘncia mais eficiente, por parte das polĂ­cias”.

O sociĂłlogo considera necessĂĄrio, tambĂ©m, uma dissociação entre instituiçÔes e torcedores. “Clubes e torcidas organizadas tĂȘm CNPJ diferentes. TĂȘm formas de organização e dinĂąmica diferentes, ainda que, sabemos, alguns clubes tenham relaçÔes nebulosas, para nĂŁo dizer umbilicais, com algumas torcidas organizadas”.

O sociĂłlogo, no entanto, alerta: muitos torcedores atuam de forma violenta porque tĂȘm certeza da impunidade. “Isso Ă© ruim porque, sem punição a essas atrocidades, dĂĄ-se salvo conduto ao indivĂ­duo para repeti-la. Eles nĂŁo podem receber anistia, porque isso acabarĂĄ estimulando outros a fazerem o mesmo”, concluiu.

As informaçÔes sĂŁo de Pedro Peduzzi, da AgĂȘncia Brasil

|📾 © Fernando FrazĂŁo/AgĂȘncia Brasil

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