Uso de canabidiol se consolida na epilepsia sem resposta a tratamentos convencionais 📸 © Alesia Kozik via Pexels

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 2% da população mundial apresenta quadros de epilepsia. Ela é considerada uma síndrome neurológica crônica caracterizada por pelo menos duas crises epilépticas espontâneas, que podem ser classificadas como focais ou generalizadas, dependendo das regiões cerebrais afetadas. O tratamento da doença é complexo e pode envolver cirurgia ou fármacos capazes de diminuir a ocorrência das crises. Um dos compostos mais estudados para casos em que não há resposta positiva com outros fármacos anticonvulsivantes, os chamados casos farmacorresistentes, é o canabidiol (CBD), presente na planta Cannabis sativa.

Para avaliar os efeitos de redução de crises, Bruno Fernandes Santos, pesquisador com doutorado na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), elaborou um artigo de revisão sistemática da literatura – tipo de estudo em que as pesquisas até o momento sobre o tema são levantadas, inclusas caso se encaixem em critérios determinados, e por fim analisadas para entender o que as melhores evidências indicam.

A pesquisa feita nas bases de dados do Google Scholar, Scielo e PubMed/Medline usando as palavras-chave Canabidiol, Epilepsy e Drug Resistant Epilepsy. Após a aplicação dos critérios de exclusão, seis estudos foram elegíveis para avaliação de texto completo. Publicado na revista Acta Epileptologica, a pesquisa revela uma redução de 41% no número de convulsões com o uso do canabidiol.

Em comparação com a redução média de 18,1% nos grupos placebo, em que foram dadas baixas doses de medicamentos convencionais, a resposta teve uma taxa 127% maior nos pacientes que receberam a intervenção canábica. “A epilepsia é complexa e uma causa de estigmatização das pessoas. Ela não é uma doença única. No caso da epilepsia refratária, pacientes com resistência, dificuldade de tratamento e não candidatos à cirurgia, existem dificuldades no cuidado”, contextualiza Santos ao Jornal da USP. Diante desses resultados, a resposta terapêutica do canabidiol ganha destaque para novos protocolos e adoção no Sistemas Único de Saúde (SUS) por seu potencial para esses casos específicos.

“O canabidiol trouxe um benefício adicional, reduzindo significativamente o número de crises nos pacientes refratários, uma melhora na qualidade de vida e outros benefícios secundários” – Bruno Fernandes Santos

Apesar das evidências científicas se tornarem mais sólidas, o tratamento ainda não é amplamente disponibilizado na rede pública de saúde por atraso em iniciativas nacionais em adotá-lo. “Desconheço iniciativas federais, mas conheço iniciativas estaduais. Há alguns Estados com programas de disponibilização para pacientes do SUS. Um grupo de colegas avaliam os pacientes e para aqueles que julgam necessário, vão indicar o canabidiol e o Estado vai fornecer para esses pacientes”, explica o médico. Apesar disso, reconhece que “não ter um plano federal quanto a isso limita as alternativas dos pacientes que vivem com epilepsia refratária hoje”.

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Mecanismo de ação

De acordo com o médico, a doença tem várias causas. “Pode ser algo que está irritando o cérebro, um tumor que irrita o cérebro, uma malformação. Ou até uma alteração degenerativa, em que o hipocampo [região do cérebro] começa a se degenerar, o que chamamos de esclerose mesial temporal”, exemplifica. Ele ressalta a diferença entre crise epiléptica e convulsão. “Convulsão é o fenômeno motor, é a pessoa ter aqueles abalos musculares durante a crise epiléptica, mas nem toda a crise epiléptica é convulsão.” Como exemplo, cita casos de intoxicação alcoólica em que ocorrem convulsões e não são casos de epilepsia.

Outra doença que pode ser confundida com a epilepsia é o Parkinson. Enquanto a primeira é resultante de uma atividade elétrica anormal no cérebro que causam as crises, a outra doença é neurodegenerativa e afeta a produção de dopamina, neurotransmissor essencial para coordenação motora. Para controlar essa anormalidades específicas da crise epiléptica, Santos explica que “o canabidiol tem um mecanismo de ação mediado pelo sistema endocanabinoide, que tenta compensar a hiperexcitabilidade aumentando a produção de endocanabinoides”. 

Esse sistema foi  identificado em 1992 por um grande grupo de cientistas. Ele é composto de neurotransmissores produzidos pelo organismo humano – os chamados endocanabinoides – e de seus receptores, como os CB1 e CB2, presentes em diversas partes do corpo, incluindo o cérebro e o sistema nervoso central e periférico. Ele desempenha um papel importante na regulação de processos como dor, inflamação, apetite, sono e humor. Estudos recentes destacam a capacidade de reduzir a sensação de dor, influenciar a memória e proteger o sistema nervoso em alguns casos. 

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“O sítio de ligação [do sistema endocanabinoide] desse ativo específico [canabidiol] vai ter várias ações que acabam controlando as crises. O ativo aumenta o limite da pessoa a convulsão”, explica o pesquisador. “É uma lógica semelhante a das medicações comuns, só que por uma outra via. As medicações clássicas vão agir no canal de sódio da membrana celular, por exemplo, bloqueando esse canal. A célula fica menos excitável com menor capacidade de gerar uma crise.” A comunidade científica ainda não compreendeu totalmente como o CBD interage no sistema.

Outras patologias e políticas públicas

“Esse sistema tem muitas ações. Eles não são específicos de tratamento epilético. Existem vários outros usos sendo avaliados”, continua. Desses usos investigados com o canabidiol, há comprovações de efeitos analgésicos e no sono já bem consolidadas. Porém, Santos alerta que “temos que ter cuidado para não achar que é uma solução de todos os males, que vai ajudar em tudo. Não é bem assim”. Essa crítica vem fundamentada em uma percepção do crescente número de médicos que se declaram especialistas em tratamentos com CBD. 

“Tem um médico que é especialista e vai usar todo o ‘armamentário’ para conseguir ajudar pacientes com aquela enfermidade. Agora, um médico que é especialista em uma ‘arma’ vai tentar encaixar aquela mesma ‘arma’ em várias enfermidades”, critica. O uso para tratar algum espectro de autismo é questionável, por exemplo, conforme o pesquisador, e afirma ser contra o avanço acrítico para tratar diversas outras enfermidades.  

O médico reforça a importância deste estudo por “trazer a relevância e mostrar a evidência científica em cima do uso do canabidiol para epilepsia refratária, porque, quando fugimos da ciência, fica uma questão política baseada em achismos”, conclui. 

Por Jean Silva (sob orientação de Fabiana Mariz), do Jornal da USP

|📸 © Domenico Marcozzi via Pixabay

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