Pequenos e silenciosos, os escorpiões desafiam a saúde pública brasileira; verões mais quentes e períodos alternados de chuvas intensas e seca, facilitam a proliferação 📸 © Josch13 via Pixabay

No início do ano, uma criança de 3 anos morreu em Jaguariúna (SP) após ser picada por um escorpião que estava dentro de sua galocha, mesmo após o cuidado dos pais em chacoalhar o calçado antes. O trágico acidente é mais um a sinalizar para um grande aumento de casos de envenenamento por escorpiões no Brasil.

“A real dimensão deste problema é provavelmente muito maior do que as estatísticas registradas sugerem”, diz o artigo publicado na Frontiers in Public HealthBaseado em um levantamento de dados de pesquisas recentes sobre o tema com hipóteses para causas e projeção para os próximos dez anos, Eliane Arantes (USP) e Manuela Pucca (Unesp) chamam atenção a essa possível crise de saúde pública pelo escorpionismo. De 2014 a 2023, os casos aumentaram em mais de 250% com 1.171.846 casos notificados no período, e as projeções indicam aumento contínuo, com estimativa de 2.095.146 casos até 2033. 

Muito lesivo e perigoso para crianças, idosos e pessoas com comorbidades cardíacas, a mortalidade por volta de 0,06% pode subestimar a relevância do problema, conforme as pesquisadoras. Apesar disso, todos estão sujeitos ao encontro com um escorpião, pois eles vivem na rede de esgoto das cidades e isso não depende da higiene residencial das pessoas. “Nos últimos anos, o crescimento foi exponencial. É uma crise silenciosa, porque não está recebendo a atenção devida”, alega em entrevista ao Jornal da USP Manuela Pucca, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp.

Dentre as espécies, o gênero Tityus é o mais preocupante, destacando-se T. serrulatusT. bahiensis, T. stigmurus e T. obscurus pela capacidade de causar significativo envenenamento. Com a rápida e desordenada urbanização, os encontros com eles se tornaram comuns devido ao acúmulo de lixo e ao saneamento inadequado. Além desses problemas, os aracnídeos podem sobreviver 400 dias sem alimento e são bem adaptados ao ambiente urbano quente e escuro nas redes de esgoto. Eles podem ser encontrados até em apartamentos muito altos por subir pelos canos; ainda, as mudanças climáticas, com verões mais quentes e períodos alternados de chuvas intensas e seca, facilitam a proliferação das populações das espécies.

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Foto de uma mulher com cabelos loiros e lisos, usando maquiagem suave, brincos de pérola e uma expressão neutra. O fundo sugere ambiente externo com árvores.
“Não vemos políticas públicas para controle e dentro da cidade não há os predadores naturais [para controle da população de escorpiões]” – Manuela Pucca 📸 © Manuela Pucca/Arquivo pessoal

Problema global, com diferenças regionais

Diversas regiões do mundo, incluindo o norte da África Saariana, a África Saheliana, a África do Sul, o Oriente Próximo e Médio, o sul da Índia, o México e a América Latina são afetadas pelo escorpionismo, o que torna o problema global. As Américas, Brasil, Paraguai, Bolívia, México, Guianas e Venezuela testemunharam um aumento alarmante nas últimas décadas. Dependendo da região e nível de urbanização, vemos diferença nas ocorrências. No Brasil, a região Sudeste apresenta os maiores números de casos notificados entre 2014 e 2023, com 580.013 casos (49,5%), seguida pela região Nordeste, com 439.033 casos (37,5%). 

Por essas diferenças regionais, as estimativas de casos para os próximos dez anos são diferentes: 2.148,576 no Sudeste, 182,836 no Sul, 1.383,800 no Nordeste, 158,573 no Norte, e 404,219 no Centro-oeste. A espécie Tityus serrulatus é a mais preocupante no Sudeste, pois se reproduz por partenogênese, ou seja, sem a necessidade de acasalamento com o macho, e está se espalhando para o País inteiro. Mesmo assim, algumas espécies e gêneros podem ser perigosos em outras regiões. A grande biodiversidade do País pode ser, aliás, um problema para o tratamento das picadas pelas diferentes peçonhas, pois o soro atualmente é feito com base no T. serrulatus. 

Mostra uma tampa de ferro fundido com a inscrição "SANASA ESGOTOS", instalada em meio a um calçamento de pedras portuguesas. A SANASA é a empresa responsável pelo saneamento básico em Campinas, SP.
O esgoto urbano, ambiente ideal para o escorpião-amarelo (T. serrulatus), continua sendo negligenciado nas políticas de controle 📸 © Wikimedia Commons

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Outro problema em relação ao tratamento é a velocidade com que tem que ser atendida a pessoa. As professoras explicam que as neurotoxinas dessas peçonhas são muito pequenas e se distribuem em alta velocidade no organismo, alcançando seus alvos. Depois que essas toxinas estão nos seus alvos, o soro antiescorpiônico é menos efetivo, e o tratamento é só dos sintomas, por não ser possível alcançar a toxina. “O soro escorpiônico não falta em quantidade nas cidades, mas ainda é normalmente centralizado em uma unidade por cidade”, explica ao Jornal da USP a professora da Unesp. Isso se deve à necessidade de um mínimo de estrutura no posto para caso haja reações adversas, como um choque anafilático. 

O soro também não está disponível nas unidades de saúde privadas, e por isso o mais adequado é buscar atendimento com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) pelo 192 para saber onde encontrá-lo na rede pública em casos de emergência. Os sintomas da picada incluem dor intensa, vermelhidão, inchaço e sudorese no local da picada, além de náuseas, vômitos, taquicardia, dificuldade respiratória e ou até mesmo choque nos casos graves.

Falta de financiamento e ações locais

Manuela chama atenção para o insuficiente investimento em pesquisas para doenças como o ofidismo (picadas de serpentes) e o escorpionismo, além da falta de reconhecimento do último como uma doença negligenciada no País. Apesar de haver cientistas capacitados na área, ela diz que o avanço é lento devido à falta de recursos.

“Outros países estão investindo mais em antivenenos de nova geração, muitas vezes com objetivos comerciais, e o Brasil vai acabar dependendo deles em um futuro próximo”, alerta, e destaca que por aqui ainda se usa a técnica centenária de aplicação da peçonha em cavalos para obtenção do soro. “É necessário investimento nessa área para desenvolver novas soluções”, completa ao Jornal da USP.

A professora Eliane Arantes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, conta que mesmo estudando há anos os escorpiões, conhecendo e implementando todas as medidas para evitar encontrá-los, já se deparou com um em sua casa. Ela chama a atenção para a quantidade de dias que eles podem ficar sem se alimentar para atentar ao cuidado ao usar as roupas guardadas há tempos dentro do armário, ou sapatos pouco usados. Recorda também do caso recente da criança que morreu ao calçar a galocha mesmo após cuidado dos pais de chacoalhá-la para reforçar a atenção necessária ao verificar a presença dos aracnídeos.

Mulher de cabelos curtos e castanhos, usando um jaleco branco. A inscrição no jaleco identifica-a como “Dra. Eliane C. A.” do “Laboratório de Toxinologia, FCFRP-USP”. Ela está sorrindo levemente em um ambiente que parece ser um consultório ou laboratório.
“Falta política para melhorar a limpeza das cidades e até para informar toda a população dos cuidados [preventivos e pós-picada], assim como é informado para a dengue” – Eliane Arantes
📸 © Eliane Arantes/Arquivo pessoal

Ela também indica algumas medidas para prevenir acidentes com escorpiões como: evitar deixar objetos no chão, como bolsas ou calçados, colocar telas nas janelas, evitar que cortinas ou lençóis arrastem no chão, manter móveis afastados de paredes, em áreas próximas a matas ou terrenos baldios, colocar azulejos ou outros materiais lisos ao redor de muros para impedir que os escorpiões subam – ou materiais encurvados como metal ou zinco ao redor do perímetro da área- , além de vedar todas as entradas e saídas de esgoto para evitar que os escorpiões entrem.

O artigo das pesquisadoras está disponível neste link.

Por Jean Silva (sob orientação de Luiza Caires), do Jornal da USP

|📸 © Pixabay

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