|đïž Lei Maria da Penha completa 18 anos com avanços, mas nĂŁo coĂbe alta de crimes contra mulher
Por Daniella Almeida, da AgĂȘncia BrasilÂ
AÂ Lei nÂș 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada hĂĄ exatos 18 anos, pelo entĂŁo presidente Luiz InĂĄcio Lula da Silva. O nome homenageia a biofarmacĂȘutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes que sofreu duas tentativas de homicĂdio pelo marido, em 1983, e se tornou ativista da causa do combate Ă violĂȘncia contra as mulheres.
A lei, que atinge agora a maioridade, prevĂȘ a adoção de medidas protetivas de urgĂȘncia para romper o ciclo de violĂȘncia contra a mulher e impedir que o agressor cometa novas formas de violĂȘncia domĂ©stica, seja ela fĂsica, moral, psicolĂłgica, sexual ou patrimonial.
Antes da lei, este tipo de violĂȘncia era tratado como crime de menor potencial ofensivo. A diretora de ConteĂșdo do Instituto PatrĂcia GalvĂŁo, Marisa Sanematsu, aponta que muitas mulheres foram agredidas e assassinadas em razĂŁo da leniĂȘncia contra esses crimes, que ficavam impunes ou sujeitos a penas leves, chamadas de pecuniĂĄrias, como o pagamento de multas e de cestas bĂĄsicas, suavizadas por argumentos como o da legĂtima defesa da honra de homens.
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âAs agressĂ”es contra mulheres eram tratadas como uma questĂŁo menor, um assunto privado, a ser resolvido entre quatro paredes. Quando a justiça era acionada, a violĂȘncia domĂ©stica era equiparada a uma briga entre vizinhos a ser resolvida com o pagamento de multa ou cesta bĂĄsicaâ, relembrou Marisa Sanematsu.
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, avalia que a lei trouxe ganhos para a sociedade brasileira. âPrimeiro, ela tipifica o crime existente: a violĂȘncia fĂsica, a violĂȘncia psicolĂłgica, a violĂȘncia patrimonial, a violĂȘncia moral e a violĂȘncia sexual. E organiza o Estado brasileiro para garantir o atendimento Ă s mulheresâ, disse Ă AgĂȘncia Brasil.
Como parte das celebraçÔes do aniversĂĄrio da Lei Maria da Penha, o governo federal estabeleceu o Agosto LilĂĄs como mĂȘs de conscientização e combate Ă violĂȘncia contra a mulher no Brasil.
Avanços
Para especialistas, entre as principais inovaçÔes trazidas pela Lei Maria da Penha estĂŁo as medidas protetivas de urgĂȘncia para as vĂtimas da violĂȘncia domĂ©stica e familiar, como afastamento do agressor do lar ou local de convivĂȘncia, distanciamento da vĂtima, monitoramento por tornozeleira eletrĂŽnica de acusados de violĂȘncia domĂ©stica, a suspensĂŁo do porte de armas do agressor, dentre outras.
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Adicionalmente, a lei estabeleceu mecanismos mais rigorosos para coibir este tipo de violĂȘncia contra a mulher e tambĂ©m previu a criação de equipamentos pĂșblicos que permitam dar efetividade Ă lei, como delegacias especializadas de atendimento Ă mulher, casas-abrigo, centros de referĂȘncia multidisciplinares da mulher e juizados especiais de violĂȘncia domĂ©stica e familiar contra a mulher, com competĂȘncia cĂvel e criminal, entre outros equipamentos.
A advogada especialista na defesa de mulheres, conselheira do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea) e representante dessa organização no ConsĂłrcio de Monitoramento da Lei Maria da Penha, Lisandra Arantes, considera a Lei 11.340 como o principal avanço na legislação brasileira para a proteção das mulheres da sociedade brasileira e pela primeira vez, reconhece que a violĂȘncia motivada pela misoginia, pelo Ăłdio Ă s mulheres, pelas questĂ”es de gĂȘnero.
âA lei Maria da Penha foi o principal avanço que nĂłs tivemos em termos de proteção Ă mulher contra a violĂȘncia. O que nĂŁo significa que ainda nĂŁo tenhamos muito pra avançar.â
NĂșmeros
O avanço na legislação nĂŁo tem evitado, no entanto, a alta de nĂșmeros de violĂȘncia contra a mulher. Dados do Conselho Nacional de Justiça sobre a atuação do poder judiciĂĄrio na aplicação da Lei Maria da Penha revelam que 640.867 mil processos de violĂȘncia domĂ©stica e familiar e/ou feminicĂdio ingressaram nos tribunais brasileiros em 2022.
Dados do Ășltimo AnuĂĄrio Brasileiro de Segurança PĂșblica mostram que todos os registros de crimes com vĂtimas mulheres cresceram em 2023 na comparação com 2022: homicĂdio e feminicĂdio (tentados e consumados), agressĂ”es em contexto de violĂȘncia domĂ©stica, ameaças, perseguição (stalking), violĂȘncia psicolĂłgica e estupro.
Ao longo do ano passado, 258.941 mulheres foram agredidas, o que indica alta de 9,8% em relação a 2022. JĂĄ o nĂșmero de mulheres que sofreram ameaça subiu 16,5% (para 778.921 casos), e os registros de violĂȘncia psicolĂłgica aumentaram 33,8%, totalizando 38.507.
Os dados do anuĂĄrio sĂŁo extraĂdos dos boletins de ocorrĂȘncia policiais, compilados pelo FĂłrum Brasileiro de Segurança PĂșblica (FBSP). Outro levantamento de fĂłrum aponta que ao menos 10.655 mulheres foram vĂtimas de feminicĂdio no Brasil de 2015 a 2023.
De acordo com o relatĂłrio, o nĂșmero de feminicĂdios cresceu 1,4% em 2023 na comparação com o ano anterior e atingiu a marca de 1.463 vĂtimas no ano passado, indicando que mais de quatro mulheres foram mortas por dia.
O nĂșmero Ă© o maior nĂșmero da sĂ©rie histĂłrica iniciada pelo FBSP em 2015, quando entrou em vigor a Lei 3.104/2015 , que prevĂȘ o feminicĂdio como circunstĂąncia qualificadora do crime de homicĂdio e inclui o feminicĂdio no rol dos crimes hediondos.
A diretora do Instituto PatrĂcia GalvĂŁo sugere açÔes de enfrentamento mais contundentes. âOs nĂșmeros alarmantes de agressĂ”es e feminicĂdios comprovam a urgĂȘncia de um pacto de tolerĂąncia zero contra a violĂȘncia domĂ©sticaâ, diz Marisa Sanematsu.
âTodo feminicĂdio Ă© uma morte evitĂĄvel, se o Estado e a sociedade se unirem para enfrentar e denunciar todas as formas de violĂȘncia que vĂȘm sendo praticadas contra as mulheres.â
Desafios
Apesar de reconhecer os avanços da legislação nestes 18 anos, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, analisa que entre as dificuldades enfrentadas para implementação efetiva da lei estĂŁo a oferta de serviços especializados e profissionais preparados para lidar com novos mĂ©todos de violĂȘncia contra as mulheres.
âPara garantir que ela saia do papel e de fato aconteça, precisamos ter serviços especializados e que o todo do sistema â composto pelo judiciĂĄrio brasileiro, pela OAB, etc â dĂȘ conta de avançar na anĂĄlise das violĂȘncias para darmos a garantia do combate Ă impunidade de agressores, porque isso tem feito com que muitos casos [de violĂȘncia] retornem.â
Em atendimento Ă lei Maria da Penha, o MinistĂ©rio das Mulheres planeja colocar em funcionamento 40 casas da Mulher Brasileira, em todos os estados e no Distrito Federal. As unidades oferecem atendimento humanizado e multidisciplinar Ă s mulheres em situação de violĂȘncia. Atualmente, dez casas estĂŁo em operação.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta no Painel de Monitoramento da PolĂtica de Enfrentamento Ă ViolĂȘncia contra as Mulheres que, em todo o Brasil, existem apenas 171 varas especializadas e exclusivas para atendimento de mulheres vĂtima de violĂȘncia domĂ©stica e familiar.
A conselheira do CFemea Lisandra Arantes aponta que muitos casos de violĂȘncia domĂ©stica sequer sĂŁo denunciados e, por isso, a possibilidade de proteção nĂŁo consegue alcançar as mulheres que nĂŁo romperam ainda o ciclo de violĂȘncia.
âMuitas vezes, [a violĂȘncia] ocorre porque elas tĂȘm uma dependĂȘncia financeira do seu agressor ou estĂŁo em uma situação de submissĂŁo, nĂŁo necessariamente relacionada Ă questĂŁo financeira, mas por conta dessa construção patriarcal da sociedade que a gente vive. E elas voltam a viver com seus agressores, nessas situaçÔes em que nĂŁo hĂĄ medida protetiva, porque nĂŁo houve uma denĂșncia, nĂŁo se buscou a proteção, infelizmenteâ, lamentou.
Outro fator negativo Ă© a desinformação. Apenas duas, em cada dez mulheres, se sentem bem informadas em relação à Lei Maria da Penha. Os dados sĂŁo da 10ÂȘ edição da Pesquisa Nacional de ViolĂȘncia Contra a Mulher, realizada pelo ObservatĂłrio da Mulher Contra a ViolĂȘncia (OMV) e o Instituto DataSenado, ambos do Senado.
A radialista Mara RĂ©gia, que apresenta o programa Viva Maria, na RĂĄdio Nacional da EBC desde 1981, celebra a luta de Maria da Penha e reconhece os desafios em torno da lei.
âA Lei Maria da Penha Ă© especĂfica para o Ăąmbito domĂ©stico, aquela violĂȘncia que acontece, em geral, do marido contra a mulher. Sabemos que as resistĂȘncias Ă lei sĂŁo muitas e que, apesar de ter chegado Ă maioridade, a prĂłpria Maria da Penha tem sido muito atacada [nas redes sociais]. Hoje, Ă© um dia de solidariedade a essa mulher que pagou com muita dor e violĂȘncia sofrida domesticamente. E lembro que uma grande parte das mulheres do Brasil sofre essa violĂȘncia em casa, todos os dias.â
Futuro
Dezoito anos apĂłs a sanção da lei Maria da Penha, organizaçÔes feministas, ativistas, parlamentares e pensadoras destacam a importĂąncia de uma lei integral de proteção Ă s mulheres em situação de violĂȘncia de gĂȘnero, que inclua novos crimes contra a mulher que surgem, por exemplo, com inovaçÔes tecnolĂłgicas, como crimes no ambiente virtual.
Desde 2022, o ConsĂłrcio Lei Maria da Penha, em parceria com vĂĄrias organizaçÔes de mulheres e feministas, tem debatido a criação de uma lei geral que reconheça e responda a todas as formas de violĂȘncia contra mulher. Sobre o tema, o consĂłrcio lançou o livro A ImportĂąncia de uma Lei Integral de Proteção Ă s Mulheres em Situação de ViolĂȘncia de GĂȘnero, disponĂvel na versĂŁo online.
A coautora Ă© a advogada feminista Myllena Calasans de Matos, integrante do consĂłrcio e do ComitĂȘ Latino Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) do Brasil. Em entrevista Ă AgĂȘncia Brasil, ela disse que o consĂłrcio tem debatido com organizaçÔes de mulheres mecanismos mais eficazes de prevenção e de melhor acesso Ă justiça para as mulheres.
âTem sido feita uma reflexĂŁo a respeito de uma lei mais ampla, que abarque todas as formas de violĂȘncia que existiam e outras que tĂȘm surgido e, por isso, necessitam tambĂ©m de uma regulação. Uma lei integral de enfrentamento Ă violĂȘncia de gĂȘnero contra as mulheres, onde vamos buscar diretrizes, objetivos, as responsabilidades dos estados, dos municĂpios, dos poderes judiciĂĄrio e legislativo, pensar tambĂ©m em um aparato de mecanismos no Ăąmbito da justiça.â
|đž © TĂąnia RĂȘgo/AgĂȘncia Brasil
RĂĄdio Centro Cajazeiras