Impactos podem ser ainda maiores quando esse tipo de violĂȘncia Ă© praticada contra adolescentes pobres, negras e com baixo nĂ­vel educacional 📾 © AgĂȘncia Brasil

Por Ivanir Ferreira. do Jornal da USP

Desamparo, medo e insegurança foram os sentimentos que davam tom Ă s falas de mĂŁes adolescentes que sofreram violĂȘncia obstĂ©trica quando tiveram seus filhos em maternidades pĂșblicas nas cidades de JoĂŁo Pessoa e Campina Grande, na ParaĂ­ba, em 2021, mostra estudo do Instituto de Psicologia (IP) da USP. 

A violĂȘncia obstĂ©trica Ă© definida pelo MinistĂ©rio da SaĂșde como abusos, negligĂȘncias e desrespeitos dirigidos Ă  gestante ou parturiente (quem acabou de ter o bebĂȘ) que a faça se sentir mal diante do tratamento recebido. Acesso negado ao prĂ©-natal, dificuldade para realização de exames, impedimento da presença de acompanhante durante o trabalho de parto, prescrição indiscriminada de ocitocina para induzir o nascimento, episiotomia (corte cirĂșrgico no perĂ­neo) e uso de expressĂ”es grotescas, zombeteiras e constrangedoras dirigidas Ă  gestante sĂŁo alguns exemplos.

“Os impactos psĂ­quicos, sociais e fĂ­sicos podem ser ainda maiores quando esse tipo de violĂȘncia Ă© praticado contra gestantes adolescentes pobres, pardas, negras e com baixo nĂ­vel educacional, perfil das mulheres entrevistadas”, afirma ao Jornal da USP Emanuel Nildivan Rodrigues da Fonseca, enfermeiro obstetra autor da pesquisa.“O sofrimento advindo da violĂȘncia obstĂ©trica leva ao adoecimento emocional  materno, Ă  dificuldade de estabelecimento de vĂ­nculos da mĂŁe com o bebĂȘ e, em alguns casos mais graves, pode atĂ© levar ao Ăłbito materno”, alerta.

A pesquisa investigou os impactos psicolĂłgicos, fĂ­sicos e emocionais que a violĂȘncia obstĂ©trica causa na vida de mĂŁes que engravidaram na adolescĂȘncia. 

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O estudo foi desenvolvido Ă  luz da teoria do psicanalista e pediatra britĂąnico Donald Winnicott (1896-1971), que ficou conhecido por suas ideias sobre o amadurecimento humano, que se estabelece a partir da relação da pessoa com o meio ambiente. “Na pesquisa, a gestante adolescente Ă© vista (compreendida) como pessoa que ainda estĂĄ em processo de formação e o bebĂȘ, como um ser que tem seu desenvolvimento emocional a partir dos primeiros vĂ­nculos estabelecidos com a mĂŁe”, explica o pesquisador.

Fonseca Ă© professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), instituição na qual fez o doutorado em parceria com o Instituto de Psicologia da USP. A tese Os impactos em gestante adolescente vĂ­tima de violĂȘncia obstĂ©trica foi defendida em 2023, sob a orientação do professor Gilberto Safra, do Departamento de Psicologia ClĂ­nica do IP.

SĂ­ndrome do pĂąnico e ansiedade

Em entrevista ao Jornal da USP, a jovem B.L., de 19 anos, uma das voluntĂĄrias da pesquisa, ainda se emociona ao falar dos abusos e desrespeitos aos quais foi submetida em 2021. Na Ă©poca, quando ainda estava na 37ÂȘ semana de gestação, precisou ir Ă  maternidade por conta de um mal-estar e foi internada para dar Ă  luz prematuramente a sua segunda filha, hoje com dois anos. EntĂŁo com 17 anos, ela havia feito acompanhamento da gestação em uma Unidade BĂĄsica de SaĂșde (UBS), mas estava muito insegura porque tinha sido diagnosticada com gravidez de alto risco por ter pressĂŁo baixa e anemia. 

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Olhando os acontecimentos em perspectiva, B. L. identifica que os abusos começaram logo ao chegar Ă  maternidade, seguiram no trabalho de parto e foram atĂ© o recebimento da alta no hospital. “Em nenhum momento foi me dado conhecimento do que estava acontecendo comigo e com meu bebĂȘ e o que seria feito para amenizar o meu mal-estar. Solicitei a presença da minha cunhada, que havia me levado ao hospital e tinha ficado na recepção, e me foi negado. Estava aterrorizada. Me senti sozinha e desamparada”, diz.

B. L. disse que teve a filha prematuramente. Com isso, ficou sob cuidados mĂ©dicos por vĂĄrios dias, fato que lhe causou muita angĂșstia e preocupação. Ela acredita que, ao dar entrada no hospital, se seu estado de saĂșde fosse estabilizado, o parto poderia ter sido adiado para as semanas seguintes, quando estaria no tempo gestacional mais adequado, entre 40 e 42 semanas, e sua filha teria tido mais tempo para desenvolver por completo os seus ĂłrgĂŁos antes de nascer. Segundo Fonseca, bebĂȘ prematuro Ă© aquele que nasce prĂ©-termo, ou seja, antes de completar 37 semanas de gestação. “Em mĂ©dia, os bebĂȘs nascem com 40 semanas”, explica.

Durante o trabalho de parto, B. L. conta que sentiu muita dor e sofreu bastante. Ela recebeu ocitocina na veia, alĂ©m de ter sido colocada, ao mesmo tempo, uma sonda urinĂĄria que a incomodava muito e que sĂł foi retirada quando o bebĂȘ começou a nascer. Seu sentimento era de desamparo e solidĂŁo porque nĂŁo tinha perto dela um acompanhante para lhe dar apoio e por nĂŁo ter informação do que estava ocorrendo. “Meu marido foi trĂȘs vezes ao hospital, mas nĂŁo conseguiu autorização para acompanhar o parto e nem permanecer no quarto como acompanhante”, diz. “Tive alta e, um mĂȘs depois, comecei a ter crises de pĂąnico e ansiedade, sintomas que ainda permanecem atĂ© hoje, diz.”

B. L. procurou atendimento psicolĂłgico, mas acabou abandonando porque, nessa Ă©poca, ela recebeu a notĂ­cia de que seu filho mais velho Ă© uma pessoa com transtorno do espectro autista e priorizou o atendimento psicolĂłgico dele. Ainda hoje, ao olhar para a filha e lembrar da violĂȘncia obstĂ©trica que sofreu, ainda se emociona.

A pesquisa

A amostra da pesquisa foi formada por 20 gestantes e puĂ©rperas (perĂ­odo apĂłs o parto atĂ© que o organismo da mulher volte Ă s condiçÔes de prĂ©-gestação) na faixa etĂĄria entre 11 e 19 anos, usuĂĄrias das duas maiores maternidades pĂșblicas de JoĂŁo Pessoa e Campina Grande, na ParaĂ­ba. A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas estruturadas, em duas fases, uma durante o perĂ­odo da internação, e a outra, quatro meses depois, cujo objetivo foi avaliar os impactos da violĂȘncia obstĂ©trica nas entrevistadas.

As perguntas tratavam sobre as impressĂ”es que elas tinham sobre o trabalho de parto atĂ© a chegada Ă  maternidade; a vivĂȘncia sobre o processo de nascimento do bebĂȘ na maternidade; a violĂȘncia durante esse processo; as impressĂ”es sobre os sentimentos durante o nascimento; e as reflexĂ”es sobre as necessidades da parturiente adolescente no momento do parto.

Medo, desamparo, solidĂŁo

Segundo Fonseca, os resultados apontaram que a maioria das entrevistadas se declararam pretas ou pardas, estavam em uniĂŁo estĂĄvel, com renda abaixo de um salĂĄrio mĂ­nimo, tinham baixa escolaridade e eram residentes no interior do Estado. Os sentimentos de medo, desamparo e solidĂŁo estiveram presentes na maioria das falas das mĂŁes adolescentes. Um grande nĂșmero delas disse ter medo de uma nova gestação e um novo parto.

Fragmentos de depoimentos das entrevistadas:

“Eu sentia muita, muita dor e ficou muito demorado antes de chegar aqui, eu jĂĄ estava com muito medo, porque a outra maternidade falou que nĂŁo tinha estrutura para ter minha filha porque o bebĂȘ estava prematuro.”

“Quando eu cheguei aqui, eu nem sei o que falar. Eu cheguei, sentei, esperei que sĂł a gota, fui atendida depois de mais de uma hora, jĂĄ estava morrendo de dor. O mĂ©dico deu um toque, aĂ­ pronto. Mandou ir para outro canto esperar, demorou tambĂ©m ainda. O medo era maior quando cheguei. NĂŁo tive outra coisa, sĂł medo mesmo de parir.”

Desconhecimento da violĂȘncia obstĂ©trica

Quando foi perguntado se elas sabiam o que Ă© violĂȘncia obstĂ©trica, a maioria das entrevistadas desconhecia o termo e muitas sequer identificaram que sofreram tal violĂȘncia, como mostram alguns fragmentos de fala.

 â€œNĂŁo sei nĂŁo. Eu sei o que Ă© violĂȘncia, que Ă© quando a pessoa comete alguma coisa com vocĂȘ que nĂŁo Ă© permitido.”

“Nunca ouvi falar, mas acho que são atos que fazem que a gente não quer que faça com a gente, aí fazem contra a nossa vontade.”

“NĂŁo fizeram nada nĂŁo, sĂł eu que fiz assim com o braço dela (enfermeira) na hora que ela estava empurrando minha barriga para forçar o bebĂȘ nascer.”

“Verificamos que vĂĄrias depoentes relataram que os procedimentos realizados antes e na hora do parto nĂŁo foram acompanhados de informaçÔes e de relação humana empĂĄtica, o que as levou a sentirem-se mergulhadas em experiĂȘncias de grande ansiedade e angĂșstia, sentindo-se manipuladas de modo objetificado, o que as lançou em dores fĂ­sicas e psĂ­quicas de qualidades traumĂĄticas”, explica o orientador da pesquisa, o professor Gilberto Safra. “Esses acontecimentos podem ter a potencialidade de afetar significativamente as relaçÔes das mĂŁes com os seus bebĂȘs, com seus companheiros e com o campo mĂ©dico e social”, diz.

VĂ­nculo mĂŁe-filho

Sobre a relação da teoria de Donald Winnicott com a violĂȘncia obstĂ©trica, o professor Gilberto Safra diz que o teĂłrico britĂąnico, em sua prĂĄtica clĂ­nica, teve a oportunidade de acompanhar milhares de bebĂȘs com suas mĂŁes em ambiente hospitalar e em situação psicanalĂ­tica. Ele percebeu que o cuidado da mĂŁe com seu bebĂȘ nascia da disponibilidade materna de colocar-se em relação empĂĄtica e sensĂ­vel com seu filho. “Nessa perspectiva, observar os efeitos deletĂ©rios da violĂȘncia obstĂ©trica torna-se algo importante, uma vez que a mĂŁe que viveu experiĂȘncias traumĂĄticas no parto terĂĄ muita dificuldade de se colocar na disponibilidade de cuidado sensĂ­vel com seu bebĂȘ, o que poderĂĄ levar a graves consequĂȘncias no estabelecimento da saĂșde fĂ­sica, emocional e mental de seus filhos”, diz Gilberto Safra.

Legislação

A mulher que sofre violĂȘncia obstĂ©trica nĂŁo tem amparo legal por leis federais. No Congresso Federal, existem apenas projetos de leis que precisam ser discutidos e aprovados. Um deles Ă© o Projeto de Lei 190/23, que altera o CĂłdigo Penal para tornar crime a conduta do profissional de saĂșde que ofende a integridade fĂ­sica ou psicolĂłgica da mulher na gestação, no parto ou pĂłs-parto. A pena prevista Ă© de um a cinco anos de reclusĂŁo e multa. JĂĄ o Projeto de Lei 422/23 inclui a violĂȘncia obstĂ©trica na Lei Maria da Penha, que trata da violĂȘncia domĂ©stica contra a mulher.

Fonseca fala da importĂąncia de se criar estratĂ©gias para melhor divulgar açÔes contra a violĂȘncia obstĂ©trica, de forma que a população possa ter acesso Ă s informaçÔes para desenvolver uma maior consciĂȘncia de seus direitos. O pesquisador entende que o fato de seu estudo ter sido feito em apenas uma regiĂŁo do Brasil trouxe um retrato regionalizado dessa problemĂĄtica. E sugere desdobramentos da pesquisa abrangendo outros Estados brasileiros.

|📾 © UNICEF/BRZ/InaĂȘ BrandĂŁo

RĂĄdio Centro Cajazeiras

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